terça-feira, maio 24, 2016

“La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”

Habituado que estou a uma produção científica regular, a sensação que tenho ao escrever sobre qualquer outro assunto, sobretudo as memórias mais ou menos ficcionadas, é de uma fresca emersão num espaço de liberdade. Fora da tirania das referencias, que no primeiro caso têm de ser exaustivas e fiéis, permito-me agora escrever e falar dos livros como os recordo, como os vivi ou mesmo como foram evoluindo no meu inconsciente, para além dos limites que os próprios autores admitiriam. E, não sendo um intelectual, fica-me uma outra oportunidade de remição. A de referir os livros pela ordem que quero, dar-lhes a hierarquia que me apetece. Esquecer-me ou não abordar livros que não me marcaram ou que nem li. Ou seja, desobriga-me da sapiência.
Permite-me ainda, se me apetecer, escrever sem precisar de  usar aspas e não ser escravo circunscrito da cultura. Escolher aleatoriamente as recordações de uma vida já longa, dividida entre a parte lúdica e de trabalho, sem a necessidade de ser entendido pela lógica, mas com alguma esperança de partilhar a emoção.

(A propósito, quatro ou cinco anos atrás, duas das minhas colaboradoras mais graduadas e amigas foram buscar-me de noite, a uma casa na periferia da cidade, rodeada de pinhais, onde vivia quase sempre só, para um internamento e intervenção cirúrgica que podiam ser os últimos. Apesar da enorme experiência que ambas tinham em lidar, dia a dia, com a doença e a morte, não conseguiram disfarçar as lágrimas provocadas por um último olhar de rotina que deitei à casa  e que lhes pareceu uma despedida.

            - “Aconteça o que acontecer foi uma vida cheia. Cheguei onde queria na profissão, cacei em todos os lugares que sonhava e tive mulheres lindas.” Disse enquanto transpunha a porta da rua.

Estas palavras, ditas mais para mim do que para elas,  provocaram a habitual reação, entre o divertimento e a censura, como de resto todas as minhas tiradas de vulgar misógino de circunstância. Que têm pelo menos o condão de secar qualquer lágrima feminina.)

 Mas porque a vida dá, por vezes e como foi o caso, mais que uma hipótese, satisfaz-me hoje saber que naquela altura, embora sem fugir à verdade, não lhes revelei tudo. É que tive, e vou tendo, muito mais do que isso.


Tenho as memórias de uma infância feliz. De uma escolaridade serena, depois de descontadas as dificuldades de uma dislexia de desenvolvimento, ainda pouco divulgada na época, no primeiro contacto com as letras. Ou, melhor dizendo, na junção das letras em palavras. E um diagnóstico mais precoce que precipitado da minha primeira professora primária. Ter-me-ia, segundo ela, desenvolvido demais fisicamente o que irremediavelmente  condicionaria uma limitação intelectual. Como um eucalipto talvez, diria eu. A esta senhora, cuja cara recordo perfeitamente, aliás parecida com a do seu filho, um cantor de esquerda agora em fim de carreira, a esta Senhora devo uma merecida homenagem. Terá sido a única pessoa, até agora, que não sobrestimou e não se deixou iludir pelas minhas capacidades.

Relembro ainda uma vida profissional desbravada com facilidade num carrossel de múltiplos exames e concursos, com urgências, consultas e enfermaria nos intervalos. Com uma investigação clínica, sobretudo na área de experimentação de novas drogas, longa e duplamente gratificante. E já agora suficiente em termos de “glamour” e reconhecimento. E, ainda, em criticas e críticos.


Mas também omiti nessa noite que rejuvenesci a cada revoada semestral de alunos, depois do silencio pesado das férias. Que revivi os meus 20-30 anos, anualmente, em cada recepção aos novos internos, que me reconciliavam com os doentes e com a Neurologia. Que me  estabilizei todos os dias em cada apoio recebido da equipa, cada vez mais vasta, e em cada luta ultrapassada.

A alusão ao trabalho estava pois correta. Quanto à caça alguns dos escritos anteriores também o poderão confirmar. O problema como é lógico, surge ao tentar justificar a bravata que disse em relação às mulheres.


Interroguei-me muitas vezes por que teria Garcia Marquez terminado a sua biografia quase no momento exato em conheceu a paixão e a mulher da sua vida, Mercedes. Como se se tivesse esgotado. Quando antes tinha discorrido livremente sobre os perigos da sua relação com Alexandrina e, sem pudor, descrito as suas  passagens carinhosas, libidinosas e mais que ocasionais por  “las bandidas” de los burdeles  de Barranquilla.

Hoje creio perceber que há um momento de viragem do antes e do depois do Amor. Não como algo a mover-se para tudo ficar na mesma, como diz Tomasi de Lampedusa a propósito do fim de uma situação de privilégio da nobreza. É mais a nobreza de algo em que tudo permanece mas que nos permite o privilégio de  reconstruir o passado e sonhar descaradamente com infinitos cenários de futuro.

Algo assim, tão intenso que distorce o tempo, impossibilita também que se conte a sua história. Porque não há presente onde essa história se apoie. Não há passado porque está a ser rescrito. Não há futuro porque não há vontade de escolher da míriada de cenários.

Percebi então o pudor de GGM em descrever o Amor, no momento em que ele nos atinge e também, digo eu, enquanto ele em nós perdura.

Eu também não o conseguirei. Pelo menos enquanto as mimosas temporãs continuarem a florir em Fevereiro. Enquanto o sol continuar a nascer por trás da “house of rising sun”. Enquanto um beijo de um neto ou uma expressão, contrariada que seja, de um filho, a revive.





Restam-me assim, para sustentar a prosápia anterior, os outros “amores”. Seguramente filhos de um deus menor incapazes de distorcer o tempo porque decorrem apenas no espaço da vida. Mas assim mesmo importantes.

(Se estivesse no início de uma conferencia teria de apresentar por lei, e agora mesmo, um “disclamer” enumerando os meus interesses passados e presentes na matéria. Ao contrário do que todos fazem, e porque já não estou sob a tutela asfixiante da “evidence based medicine” ,não vou recorrer ao expediente de passar o quadro tão depressa que ninguém tem tempo de o ler. Recomendo mesmo que não se fiquem apenas por estas estrofes de Pablo Neruda.

Text Box: He vivido tanto que un día 
tendrán que olvidarme por fuerza, 
borrándome de la pizarra:
mi corazón fue interminable.
Pero porque pido silencio 
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrario:
sucede que voy a vivirme.












E agora começam os grandes dilemas. O primeiro é o da idade e da decadência dos autores  quando escrevem de amores.

Os românticos, sonhadores mágicos como Garcia Marquez , tentam transportar as memórias para o tempo presente. Escrevem livros cheios de ternura ridícula, inconsequente e apenas idealizada. Falta-lhe o viço, a juventude e seguramente outras coisas. É uma espécie de inversão total do Édipo em que ele, à falta de desejo, se transfigura em mãe.

Roth começou por seguir um caminho paralelo mas não convergente. O “Animal moribundo” de um doente quase terminal de doença prostática e penso que de uma jovem sul-americana de sonho. A incontinência do personagem dá bem ideia da sua impotência e falhada sublimação.

Em comum têm o facto de indiscutivelmente gostarem de mulheres. Um capaz de esperar 100 anos. Outro com a urgência e algum do pragmatismo judaico.

Penso que no final ganhou largamente a ironia, transformada em cinismo mais brilhante que mórbido de Roth. Que fica a dever o êxito da sua reabilitação não apenas a si próprio mas também à soberana interpretação de Al Pacino. É evidente que nos referimos  a“ A Humilhação”.

Definido um dos caminhos por onde não quero ir depara-se-me um outro problema.

“A sensação de que incidentes casuais e acontecimentos externos têm um significado particular e incomum, específico para a pessoa”, assim define a psiquiatria a ideia de referência.

Esta circunstância que todos nós já experimentamos está exacerbada nos paranoicos e nas vítimas de traição.

Na mulher normal diria que é mais subtil, menos intensa, mas mais frequente. Podem chamar-lhe sexto sentido. Pode-se chamar presunção. Eu acho sublime, no seu significado e naquilo que revela da relação com os outros.

Isso, as ideias de referencia, acontecerão inexoravelmente com aquilo que um dia, e se vier a propósito, escreverei. Vou tentar evita-las, sem esperança de sucesso ou mesmo temendo o resultado contrário.

Vem-me à memória as “Conversas n”a Catedral” de Vargas Llosa

em que a trama saltita de grupo em grupo, de pessoa em pessoa, de uma época à outra, isto tudo na mesma frase, no mesmo parágrafo, sem nenhuma explicação nem roteiro que nos guie. Poderei tentar seguir o estilo e descrever apenas uma (a) mulher, o ser mais parecido com a técnica estonteante de Llosa. Só que no fim todo o seu romance faz sentido. No fim a minha estória acabará, estou certo, numa enorme confusão. Se isso acontecer é porque tive êxito em descrever a minha relação com a mulher.




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