terça-feira, maio 10, 2016

As SO2
Escrevia, num dos seus livros, que gostava de caçar com quem dele soubesse apenas que era “ rijo de perna e esquerdino a atirar”. Foi pois com corrosiva ironia que viu os seus acompanhadores naquela distante manhã, no meio de um Alentejo mais quente e mobilizado do que habitual, num terreno que era ainda cinegeticamente livre- a res nulla latina- onde a caça não tinha dono e se circulava livremente ao sabor da resistência e do voo das perdizes numa irrepetível sensação de liberdade, foi nessa manhã dizia eu, que ele notou que tínhamos umas espingardas novas. E o seu nariz adunco parecia preceder e orientar o olhar com que as examinou ao pormenor. Não se pareceu deter na elegância da forma, estilizada como só os italianos conseguem. Nem mesmo nas gravuras perfeitas, com imagens de aves desenhadas ao pormenor de penas. Nem na madeira de nogueira com as suas ramificações e nós que são o mais próximo que o mundo vegetal consegue chegar-se à arte.
Era de facto uma arma acima das nossas posses. Que só lográmos adquirir numa época em que tínhamos um 1º ministro protegido por uma muralha de aço de opereta e que, por temerosas razões, eram vendidas ao desbarato.
E aqueles laivos de pronuncia transmontana, que depois de tanto mundo remanesciam ainda naquela voz, deram relevante impacto a uma critica mais destruidora do que as SO2:
- “Mas digam-me lá, essas armas tocam campainhas quando acertam nas perdizes?”
Como muitas outras vezes não tivemos resposta na ponta da língua. Tentei pelo menos demonstrar durante esse dia que, se não era esquerdino a atirar, pelo menos tinha mais perna que língua e mais pontaria do que alguns companheiros desejariam. Mas de facto não ouvi campainhas...
Na viagem de regresso, que demorava horas, vim propositadamente a tecer louvaminhas à serra dos Milhafres, ao uivar dos lobos e a Aquilino perante um silêncio que interpretei como aquiescente. Foi já com as ruinas do castelo de Penela à vista que rompeu o longo, e por certo menos brilhante que entusiasmado monólogo.
- Pois, terás razão em algumas cousas, mas já notaste que ele põe o pastor a falar da mesma maneira que o bispo?
Novamente não tive resposta à altura. Nem sequer me lembrei do Malhadinhas e da sua história de violação e morte. Mas a inquietação lá ficou, como uma cicatriz antiga, que se fazia sentir cada vez que me apetecia voltar a ler Aquilino...
Algumas outras caçadas tivemos nos anos que se seguiram de progressivo despovoamento cinegético e desencanto.
Visitei-o no seu leito final num hospital que fica aqui em frente mas nunca mais foi o mesmo. Os medicamentos e os efeitos remotos da doença que o consumia retiravam-no por vezes do mundo da realidade.
- “O Sr. Dr. lembra-se de mim?”
Perguntei sem esperança. Os olhos abriram-se-lhe com o mesmo brilho que nos trespassava o corpo e nos entendia as emoções. Como certas palavras dos seus livros.
- “Lembro. Do teu grupo de caça eras o menos mau”.
Mas as últimas palavras que dele ouvi foram um pedido que só um caçador entenderá na forma e sobretudo na essência. Que quando atirasse a uma perdiz de “bico a baixo” -as que voam do cimo da serra com asas semicerradas a uma velocidade estonteante e com um zumbido quase balístico - que me lembrasse Dele. Como se alguma vez o tivesse esquecido! Os seus olhos quase se tornaram humanos e vi que se tinha refugiado nas recordações que amava. Saí lentamente sem quebrar o encanto e com as lágrimas correndo.
Mais tarde, e se vier a propósito, contarei como me desenvencilhei deste pedido. Afinal era o “menos mau” do meu grupo!

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