sexta-feira, maio 13, 2016



“Aos quarenta e quatro anos continuo a sonhar com uma espécie de ternura essencial.»
(Roman Gary, A Promessa)
Teria 12 ou 13 anos porque frequentava ainda o Liceu Francês e vinha a casa de comboio nas férias. A minha mãe tinha-me dado este livro, junto com algumas insinuações e recomendações mais ou menos descaradas, sugestionando que aquela relação de mãe com o filho, tema principal do enredo, seria algo de exemplar. Ainda não percebi se anteciparia uma projeção de futuro –o desejo que o livro me influenciasse positivamente- ou se referiria ao então atual, não querendo que a leitura me transvertesse do bom caminho que seguia. Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo. Esta dualidade, da lógica incontornável e simultânea como a do sim e do não, um caminho ou o seu contrário, defendidos com a mesma convicção, encontrei-a na heroína o livro. Como já a tinha suspeitado na minha mãe. E como vim a encontrar em algumas das mulheres de quem mais gostei depois ( aqui que se lixem os psicanalistas mais ortodoxos).
Em que o sim será, por exemplo, uma tentativa manifesta de condução. E o não servirá para, se as coisas não correrem como desejado, não perder por completo o controlo da situação salvando a face e podendo sempre recomeçar na base inicial.
E revi-me na personagem mais jovem da história. Naquela paixão envolvente e bela mas que roça a dependência sem crítica nem limites. Que nos transmite uma noção de ternura e segurança mas que exige tudo em troca. O nosso pensamento, a nossa emoção mas acima de tudo uma grande parte da nossa conexão com o mundo. Um filtro do que se entranha e do que sai de nós. Exemplos no romance, e já agora na vida de algumas pessoas: o papel do pai, menorizado pela mãe, como ausente ou pouco importante na relação entre os dois. Mas Roman Gary ainda o caricaturou mais, descrevendo-o como fugidio às suas responsabilidades, um débil que morreu às portas da câmara de gás com um ataque de pânico.
“Tu terás que ser melhor que o teu pai, não porque queres, mas porque eu mereço”. Esta frase não é do autor mas poderia ter sido escrita em qualquer altura do livro. E nela pode encerrar-se toda uma mitologia que vem dos escritos gregos e que foi reabilitada em finais do século XIX. Uma mitologia e um equívoco ao considerar indispensável apenas a parte filial da relação. E a luta constante para alcançar espectativas que não são as nossas. Mas também aquela mãe impar que se sacrificava para além do concebível. O que só servia para fechar ainda mais o círculo de chantagem com aquilo que de mais puro existia nos dois corações e depois, a descida ao precipício da culpabilidade.
Não entendi, na altura da primeira e única leitura, os sintomas da luta do escritor contra este estado de coisas. A sua revolta parecia-me de uma ingratidão inqualificável. As suas fugas ocasionais de uma insensibilidade insuportável.
Dada a minha relação com os livros ( que qualquer dia explicarei se vier a propósito) quando quero reler uma obra tenho de a adquirir de novo.
Tal não aconteceu com “ A promessa”. A única leitura que fiz ficou-me impressa nos circuitos da memória e da emoção. À medida que eu ia crescendo e ganhando autonomia, as sensações que evocavam estas memórias passaram por vários estadios. Depois de ser “o livro da minha vida” passou a um teatro vivo do que não queria ser. Depois odiei-o visceralmente. Só depois o entendi na sua genialidade e foi apenas quando compreendi, por fora digamos assim, a parte importante da vida que o Autor aborda.
Mas uma dedicada e controladora mãe como a de Roman não fica por aqui. Pretende, talvez muito licitamente, prolongar a sua presença para além da ausência física.
O ter escrito e datado uma série de cartas para que o filho não se apercebesse da sua morte é disso um exemplo e uma das partes mais comoventes da literatura atual que tive oportunidade de ler.
“Aos quarenta e quatro anos continuo a sonhar com uma espécie de ternura essencial.»
escrevia ele enquanto observava os pássaros ao pé do mar...
Numa associação talvez não muito evidente de ideias lembrei-me subitamente de um texto de Coimbra de Matos, escrito num obscuro jornal médico da década de 70 ou 80 em que fala do fim da psicanálise de um neurótico que aparentemente já se tinha apercebido de todos os mecanismos que condicionavam a sua doença.
- “ Mas de vez em quando ainda sinto os dedos dela acariciando-me a nuca...
- “Isso são os dedos da morte” Vociferou o terapeuta.
Talvez sejam. Mas mesmo aos 68 não há doçura que se lhes compare...

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