Milagre e logro
Depois de passar Leiria perto da Gândara e de Marrazes, na
estrada para a Figueira da Foz, se olhar com atenção para a direita,
descortina, entre as árvores e meio escondido, um clube de tiro onde me desloco
com frequência para treinar. Tal como aconteceu hoje, dia de calor abrasador.
No regresso, e quando tenho tempo, viajo algo perdido por estradas secundárias
flutuando no País rural que ainda somos. Esta tarde depois de passar uma
pequena povoação, e sem razão de maior além de uma doce sonolência, vi o pinhal
que o sol já oblíquo enchia de sombras e de luz filtrada. Parei e mergulhei
nele, pisando a caruma macia, estaladiça, apelativa. Deitei-me de bruços, a
cabeça sobre a almofada dos braços cruzados e aspirei o aroma a areia e a
resina seca da minha infância, que começou a passar por mim em clarões de
imagens que as pálpebras isolavam do exterior.
Quando julguei ter acordado vi-a.
Na mesma posição terei acordado, como muitas vezes me
acontece, com o abesular de uma frase retirada dos circuitos recônditos e
oníricos das memórias.
“...com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.”
E com o desconforto da alma mal-entendendo.”
Não sei o significado da intromissão do Álvaro de Campos
neste despertar porque o relativo mal-estar era apenas físico. Certo que a alma
também não entendia o que via, mas a sensação estava longe da amargura realista
do verso.
-
“Encontrei-te tão desabrigado no teu sono que resolvi ficar”. Estava sentada,
cabelo em atraente desalinho, os braços em redor dos joelhos recobertos por uma
desordem de folhos de cores indistintas, os pés descalços.
- “Sabes
por acaso o nome da povoação que deixaste lá atrás?”
-”Não”-
respondi ainda com a mesma expressão de surpresa inicial.
- “Mas olha
que está escrita à entrada em letras bem grandes. Se já não reconheces os
símbolos, se já não juntas as letras, se já não apreendes o seu significado
pela imagem, talvez sejas mesmo um caso perdido.” Disse com um sorriso que me
pareceu mais irónico que de desistência.
-“Pois, o
nome da povoação é Amor. E se não reconheces a palavra como poderás entender o
sentimento e tudo o resto?”
- “Tu por certo
saberás...”- defendi-me eu.-“ E já agora como te chamas?”.
- “Como me
chamo ... o meu nome pouco importa, não passou à história, mas eu sim. As
letras que viste, não leste nem entendeste, dedicaram-nas a mim. Ainda estes
pinheiros mal tapavam o sol com que agora brincas e o mar se ouvia à distancia”.
- “Tinha a
ideia que o nome de “Amor” seria o que restou de uma relação que o D. Diniz
teve por aqui com uma camponesa. Há mesmo historiadores recentes que insinuam
que eram amores com um homem...”
Levantou-se tão depressa que apenas pressenti o roçagar
precipitado dos folhos e o peso dos seios que o cordão aberto do decote quase
revelava, antes de uns olhos
nocticolores ocuparem toda a minha visão faiscando um súbito
ódio como só uma mulher pode.
Não me assustei. Já tinha passado por situações semelhantes
e com outras cores. Os verdes, os mais assassinos, os azuis mais deliquescidos
e os mais escuros, como era o caso, que parecem concentrar em si todos os
abalos do passado remoto da espécie.
Para não desviar os olhos é preciso abstrair-se noutros
sentidos. O peso era agora real. A respiração agitada e próxima. O cheiro a
primavera de prado e a incenso profanado. Os cabelos submergiam-me o rosto. Mas
era o imago esmagador da presença física em si que me aniquilava. E o ódio dos
olhos que depois de rebuscar o mais profundo da minha alma se foi consumindo
como um nascer do sol...
O sonho, dizem, é o inconsciente, as reminiscências, o quimérico,
o imaginário e o desejo que emergem soltos sem a advertência nem a modulação da
vontade e das conveniências. No meu caso foi mais como um filme romântico hollywoodesco
da década de 50 ou a “reverie” erótica de determinadas mulheres. Como numa
película cortada pela censura vi-a já sentada na posição inicial. Os cabelos
talvez mais graciosamente desgrenhados, a postura mais permissiva, a face mais rosada,
os olhos mais líquidos e profundos e os lábios entreabertos como se se
preparasse para um longo monólogo. Estranhamente, e contra o que é meu costume,
confiei.
-“Não, era uma relação com um homem não. Nem sei com que intenção isso foi alvitrado. Mas suspeito de conjurações- que já nessa época existiam- e que nos tempos de agora parecem ter ganho maior evidencia. Quando era das mulheres, a inveja era menos dissimulada. Eu bem a percebia no olhar esguelhado das minhas companheiras. Na avaliação que do meu corpo faziam. Na atenção, sempre pronta a censurar, com que seguiam os meus gestos, as minhas palavras. Eu tinha consciência disso e nem te posso dizer que não gostava. Erguia a cabeça, endireitava as costas e andava com o ar mais felídeo de que era capaz. Sentia aquele orgulho que só a paixão do homem amado nos pode exaltar.”
“Pouco me interessava que fosse Rei. Desde que eu fosse sua mulher e rainha dele próprio. De resto não gostava de o encontrar sedoso e postiçamente perfumado, como quando vinha da corte e o desejo o fazia correr até mim. Reverenciava isso sim eram os olhos ainda injetados de emoção e da força, o desalinho do cabelo e das vestes, o suor salgado da perseguição, o cheiro a mato, urze e estevas e as mãos com laivos de sangue, quando me procurava depois de um dia de caça, como a sua última presa a que se renderia...”
-“Não, era uma relação com um homem não. Nem sei com que intenção isso foi alvitrado. Mas suspeito de conjurações- que já nessa época existiam- e que nos tempos de agora parecem ter ganho maior evidencia. Quando era das mulheres, a inveja era menos dissimulada. Eu bem a percebia no olhar esguelhado das minhas companheiras. Na avaliação que do meu corpo faziam. Na atenção, sempre pronta a censurar, com que seguiam os meus gestos, as minhas palavras. Eu tinha consciência disso e nem te posso dizer que não gostava. Erguia a cabeça, endireitava as costas e andava com o ar mais felídeo de que era capaz. Sentia aquele orgulho que só a paixão do homem amado nos pode exaltar.”
“Pouco me interessava que fosse Rei. Desde que eu fosse sua mulher e rainha dele próprio. De resto não gostava de o encontrar sedoso e postiçamente perfumado, como quando vinha da corte e o desejo o fazia correr até mim. Reverenciava isso sim eram os olhos ainda injetados de emoção e da força, o desalinho do cabelo e das vestes, o suor salgado da perseguição, o cheiro a mato, urze e estevas e as mãos com laivos de sangue, quando me procurava depois de um dia de caça, como a sua última presa a que se renderia...”
- “Mas ele era casado não era?” perguntei tentando a
entoação mais neutra que me era possível e provocando-lhe um breve encolher de
ombros.
- “Parece até que com uma futura santa...”. Desta vez não
conseguiu resistir à provocação.
- “Consegues imaginar o que seria se todas as mulheres, só porque
enganam o marido, com rosas que seja, fossem canonizadas! Ela fingia-se santa,
isso sim! Uma vez, em troca da coragem que não tinha para o confrontar,
resolveu alumiar todo o caminho desde minha casa ao castelo, caminho que ele
teria forçosamente de percorrer para voltar, sob o olhar velado, mas zombeteiro
das aldeias”. O esforço para se conter aprofundava-lhe a respiração. -” Só lhe faltou
mesmo pendurar duas luminárias na ponta dos...”
- “Bem!” interrompi eu, o mais abruptamente que me foi
possível, olhando aqueles olhos agora faiscantes e o rubor quase púrpura dos lábios
que pronto se cerraram.
-” Tão cego vinha”
citei eu reproduzindo o que me lembrava da reação do amante iluminado.
“-Tu julgas que o amor necessita de luz e esclarecimento e
lucidez..Mas eu dava-lhe a cegueira do sol mais brilhante, oferecia-lhe o sonho
das sombras mais profundas, o riso de um regato de montanha, a raiz entranhada
na terra e a seiva escorrendo desbragada.”
Acordei para o meu mundo com um arrepio. Era já noite com o
cheiro da caruma infecunda e da resina ressequida. Dirigi-me ao carro
tropeçando nos ramos secos dos pinheiros. A segurança dos “led” de última geração substituíram a luz do ciúme,
do despeito e do amor no regresso a casa.