domingo, julho 10, 2016

Milagre e logro 
Depois de passar Leiria perto da Gândara e de Marrazes, na estrada para a Figueira da Foz, se olhar com atenção para a direita, descortina, entre as árvores e meio escondido, um clube de tiro onde me desloco com frequência para treinar. Tal como aconteceu hoje, dia de calor abrasador. No regresso, e quando tenho tempo, viajo algo perdido por estradas secundárias flutuando no País rural que ainda somos. Esta tarde depois de passar uma pequena povoação, e sem razão de maior além de uma doce sonolência, vi o pinhal que o sol já oblíquo enchia de sombras e de luz filtrada. Parei e mergulhei nele, pisando a caruma macia, estaladiça, apelativa. Deitei-me de bruços, a cabeça sobre a almofada dos braços cruzados e aspirei o aroma a areia e a resina seca da minha infância, que começou a passar por mim em clarões de imagens que as pálpebras isolavam do exterior.


Quando julguei ter acordado vi-a.

Na mesma posição terei acordado, como muitas vezes me acontece, com o abesular de uma frase retirada dos circuitos recônditos e oníricos das memórias.
“...com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.” 
Não sei o significado da intromissão do Álvaro de Campos neste despertar porque o relativo mal-estar era apenas físico. Certo que a alma também não entendia o que via, mas a sensação estava longe da amargura realista do verso.

            - “Encontrei-te tão desabrigado no teu sono que resolvi ficar”. Estava sentada, cabelo em atraente desalinho, os braços em redor dos joelhos recobertos por uma desordem de folhos de cores indistintas, os pés descalços.

            - “Sabes por acaso o nome da povoação que deixaste lá atrás?”

            -”Não”- respondi ainda com a mesma expressão de surpresa inicial.



            - “Mas olha que está escrita à entrada em letras bem grandes. Se já não reconheces os símbolos, se já não juntas as letras, se já não apreendes o seu significado pela imagem, talvez sejas mesmo um caso perdido.” Disse com um sorriso que me pareceu mais irónico que de desistência.
            -“Pois, o nome da povoação é Amor. E se não reconheces a palavra como poderás entender o sentimento e tudo o resto?”

            - “Tu por certo saberás...”- defendi-me eu.-“ E já agora como te chamas?”.

            - “Como me chamo ... o meu nome pouco importa, não passou à história, mas eu sim. As letras que viste, não leste nem entendeste, dedicaram-nas a mim. Ainda estes pinheiros mal tapavam o sol com que agora brincas e o mar se ouvia à distancia”.

            - “Tinha a ideia que o nome de “Amor” seria o que restou de uma relação que o D. Diniz teve por aqui com uma camponesa. Há mesmo historiadores recentes que insinuam que eram amores com um homem...”

Levantou-se tão depressa que apenas pressenti o roçagar precipitado dos folhos e o peso dos seios que o cordão aberto do decote quase revelava, antes de uns olhos
nocticolores ocuparem toda a minha visão faiscando um súbito ódio como só uma mulher pode.

Não me assustei. Já tinha passado por situações semelhantes e com outras cores. Os verdes, os mais assassinos, os azuis mais deliquescidos e os mais escuros, como era o caso, que parecem concentrar em si todos os abalos do passado remoto da espécie.
Para não desviar os olhos é preciso abstrair-se noutros sentidos. O peso era agora real. A respiração agitada e próxima. O cheiro a primavera de prado e a incenso profanado. Os cabelos submergiam-me o rosto. Mas era o imago esmagador da presença física em si que me aniquilava. E o ódio dos olhos que depois de rebuscar o mais profundo da minha alma se foi consumindo como um nascer do sol...


O sonho, dizem, é o inconsciente, as reminiscências, o quimérico, o imaginário e o desejo que emergem soltos sem a advertência nem a modulação da vontade e das conveniências. No meu caso foi mais como um filme romântico hollywoodesco da década de 50 ou a “reverie” erótica de determinadas mulheres. Como numa película cortada pela censura vi-a já sentada na posição inicial. Os cabelos talvez mais graciosamente desgrenhados, a postura mais permissiva, a face mais rosada, os olhos mais líquidos e profundos e os lábios entreabertos como se se preparasse para um longo monólogo. Estranhamente, e contra o que é meu costume, confiei.

-“Não, era uma relação com um homem não. Nem sei com que intenção isso foi alvitrado. Mas suspeito de conjurações- que já nessa época existiam- e que nos tempos de agora parecem ter ganho maior evidencia. Quando era das mulheres, a inveja era menos dissimulada. Eu bem a percebia no olhar esguelhado das minhas companheiras. Na avaliação que do meu corpo faziam. Na atenção, sempre pronta a censurar, com que seguiam os meus gestos, as minhas palavras. Eu tinha consciência disso e nem te posso dizer que não gostava. Erguia a cabeça, endireitava as costas e andava com o ar mais felídeo de que era capaz. Sentia aquele orgulho que só a paixão do homem amado nos pode exaltar.”
“Pouco me interessava que fosse Rei. Desde que eu fosse sua mulher e rainha dele próprio. De resto não gostava de o encontrar sedoso e postiçamente perfumado, como quando vinha da corte e o desejo o fazia correr até mim. Reverenciava isso sim eram os olhos ainda injetados de emoção e da força, o desalinho do cabelo e das vestes, o suor salgado da perseguição, o cheiro a mato, urze e estevas e as mãos com laivos de sangue, quando me procurava depois de um dia de caça, como a sua última presa a que se renderia...”



- “Mas ele era casado não era?” perguntei tentando a entoação mais neutra que me era possível e provocando-lhe um breve encolher de ombros.
- “Parece até que com uma futura santa...”. Desta vez não conseguiu resistir à provocação.
- “Consegues imaginar o que seria se todas as mulheres, só porque enganam o marido, com rosas que seja, fossem canonizadas! Ela fingia-se santa, isso sim! Uma vez, em troca da coragem que não tinha para o confrontar, resolveu alumiar todo o caminho desde minha casa ao castelo, caminho que ele teria forçosamente de percorrer para voltar, sob o olhar velado, mas zombeteiro das aldeias”. O esforço para se conter aprofundava-lhe a respiração. -” Só lhe faltou mesmo pendurar duas luminárias na ponta dos...”
- “Bem!” interrompi eu, o mais abruptamente que me foi possível, olhando aqueles olhos agora faiscantes e o rubor quase púrpura dos lábios que pronto se cerraram.
-” Tão cego vinha” citei eu reproduzindo o que me lembrava da reação do amante iluminado.
“-Tu julgas que o amor necessita de luz e esclarecimento e lucidez..Mas eu dava-lhe a cegueira do sol mais brilhante, oferecia-lhe o sonho das sombras mais profundas, o riso de um regato de montanha, a raiz entranhada na terra e a seiva escorrendo desbragada.”


Acordei para o meu mundo com um arrepio. Era já noite com o cheiro da caruma infecunda e da resina ressequida. Dirigi-me ao carro tropeçando nos ramos secos dos pinheiros. A segurança dos  “led” de última geração substituíram a luz do ciúme, do despeito e do amor no regresso a casa.