segunda-feira, março 21, 2005

A VENDEDORA DE MIRAGENS

Ninguem, e muito menos ela própria, sabe bem como tudo terá começado.
Há quem suspeite da terra ressequida e árida em que nasceu. A favor desta hipótese os antigos que se lembram de a ver, bem pequena e triste, quase sempre de olhos fechados. Mas mesmo os pincipais opositores desta teoria recordam, não sabem bem se num dia ou numa época. Ou mesmo num inverno frio, seco e cinzento. O que é certo é que ela começou a sorrir. Ainda que e só com os olhos fechados. E lembram-se, não por ser um sorriso terno e quente de criança. Surgia do nada, congelava por uns momentos e depois desfazia-se deixando apenas uma sugestão, uma dúvida, quase um desencanto...
Ela dirá que nessa altura começou a viver. Lentamente a areia e o deserto ganhavam cor. O ar quente enchia-se de um odor quase enjoativo a plantas exóticas e a flores murchas. Cedo no entanto começou a saber corrigir estes excessos. Os excessos de cor, os excessos de luz... Pena mesmo era que quando abria os olhos tudo desaparecia. Pior ainda que as outras pessoas pareciam não ter conhecimento desse seu mundo.
Foi então que, sem saber como, começou a partilhar as suas miragens. No início quase a medo como quem conta uma história de fadas, como algo de irreal, distante, impossível.
Serviu esta fase, passageira e pouco importante, para descobrir como as pessoas gostavam de histórias.E, revelação surpreendente, como ela propria se alimentava delas.
Mas, terá sentido nessa altura, as histórias que contava eram apenas um reflexo insatisfatório. Algo como um raio de sol que cega e ilude mas que não lhe pertencia por muito tempo.
Teria mesmo era de se incluir na história. As primeiras tentativas foram desengonçadas. Inábeis. Depois, procurando ávidamente agora os olhos das pessoas, foi pouco a pouco eliminando tambem os excessos dela própria. Construindo golpe a golpe a imagem que os outros aprovavam. Nem perfeita de mais, nem ela própria que desconhecia.Apenas o suficiente.
Nesta altura terá reflectido sériamente para que serviria partilhar as imagens do seu mundo e mesmo as dela.
E aqui surge de novo a dúvida. Os tais antigos dizem que escolheu os personagens da vida real e os incluiu nas suas miragens com pequenos ajustamentos. Os mais incondicionais dizem que os transportou para o seu mundo de verdade e luz onde eles se reconheceram.Os mais cínicos ponderam que afinal enquanto as pessoas precisarem de histórias haverá sempre vendedores de miragens.
Será que alguem se quer dar ao trabalho de descobrir o deserto para alem da miragem?
Ou será que existe miragem para alem do deserto? Seria a propria vendedora uma miragem?

quinta-feira, março 03, 2005

Tabacaria

O prazer de ensinar, a meio da noite á filha adolescente, a Tabacaria. O imaginar as leituras, as entoações, os estados de alma até ela me confidenciar com aquele desapego sem indiferença:
-"Olha, estou apaixonada pela Tabacaria"!
A noção que há distancias de tempo, há saltos de gerações, há desertos de insinuações e mundos de contradições que estão apenas á distancia de um poema.