quinta-feira, junho 30, 2016



O relógio do inconsciente
Tudo terá acontecido por acaso. Uma reunião de investigadores de um estudo de uma das numerosas drogas russas compradas por uma companhia ocidental. No Mónaco. A que se juntou o desejo, muitas vezes adiado, de conhecer Veneza. Outra reunião, da Neuronet, em Florença e mais uma distracção do destino. Não havia voos directos e o comboio perfilava-se como mais rápido e apropriado.
"Tinha de aprender a viver com a sua doença. Que obsessivamente o obrigava a horários quase rígidos e a alimentação regular e equilibrada. Um cruzeiro parecia novamente uma opção razoável. Uma noite de mistral desde Civitavechia a Livorno e os balanços e rangidos do Funchal levaram-no a procurar refúgio num comboio para Florença. Ia inseguro da sua nova situação mas com companhia solícita e apaixonada."
As chegadas a Florença coincidiram no mesmo mês e no mesmo dia. Só disso teve consciência quando a gare se lhe ofereceu, não como descoberta mas como memória. Cada recanto, cada binário. O vagabundo ainda dormindo no chão. E o mesmo relógio que inexorável e quase milimetricamente tinha marcado 21 anos.
As lágrimas irromperam impiedosas e as recordações voaram para a cidade e para aquele quarto esconso com os telhados antigos por vista e os sinos a tocar. E pela primeira vez continuou a chorar as lágrimas que não tinha vertido, a fazer as despedidas que não tinha feito. Naquele lugar de partidas e chegadas encontrou o passado.

quinta-feira, junho 23, 2016



Lecturing...

Remonta aos 20 anos acabados de fazer, nas então célebres sessões das quintas-feiras da cadeira de Anatomia Patológica, a minha primeira experiência e o início de um encantamento. O tema era sugestivo e talvez um pouco faticano: “Revisão anátomo-clínica de 100 casos de AVC”.
Recordo a preparação do manuscrito com todos os livros e revistas abertos em cima de uma enorme mesa de bilhar, os diapositivos dos cortes de cérebro e a ajuda ainda paternal e segura do meu mestre. Do cuidado com que escrevi, não fosse a memória trair-me, em letras grandes e tinta preta, a sessão que iria dizer, numa resma de papel pesado. Que ficou esquecida em cima da secretária da sala de aula. É que, por muita que fosse a ansiedade dos dias precedentes, ao subir o estrado, ao olhar para o anfiteatro cheio, descobri em mim uma outra obscura e improvável natureza histriónica, que as palmas finais apenas reforçaram.
Não parei desde aí, mas também não é de mim que quero falar. É dos outros. Das múltiplas, sessões, conferências, seminários, mesas redondas, lições a que fui assistindo por esse mundo fora. Em que muito aprendi, modifiquei conceitos e atitudes.

(Convém referir que houve imensas a que não assisti ou por escolha prévia ou por descaradamente as abandonar a meio. Atitude que se não me gerou grandes simpatias, estou seguro terá contribuído para alguma da sanidade mental que ainda conservo).

Em primeiro lugar um destaque para os speakers ingleses. De longe os melhores, ajudados pela língua nativa e pelas entoações e melodia por ela permitidas. Nem os sapatos cambados, nem o blazer com caspa, nem mesmo a inevitável gravata do regimento conseguem desatentar da tradição dos esquemas didáticos, fossem eles genéticos ou aprendidos, dos oradores ingleses.

Os seus parentes americanos têm a mesma língua, mas uma atitude diferente ainda que diversificada. Vi alguns com botas de pele de cobra e salto alto, um cordão e uma placa colorida e corneada substituindo a gravata, olhando como se nos avaliassem por baixo de um stevenson.  Uma vez que o púlpito não permite a postura de saloon de um Clint Eastwood dos velhos tempos, apoiam os 2 cotovelos e brandem o ponteiro luminoso como um colt 45 enquanto debitam um discurso cool.

Há também os "profissionais" que se tornam mais transparentes quando a nacionalidade é americana ou italiana. O fato de Oxford Street azul escuro com padrão invisível, a gravata de Saville Row ou Prada aconselhada pelos mentors de televisão, os sapatos feitos à mão, o cabelo vindo de um cabeleireiro obsessivo. Com o mesmo fato, a mesma gravata e até a mesma convicção, defendem em sessões sucessivas, separadas por horas ou minutos, medicamentos diferentes e diferentes interpretações da mesma evidencia clínica, consoante os laboratórios que os contratam. Menos perigosos indiscutivelmente os italianos que parecem estar (quase) sempre com um ar de Nero arrependido. Mas, até para ser venal é preciso merecimento, diria certamente o Machado de Assis.

(“Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e  legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?.")

Há também, e de todas as nacionalidades, os que por insegurança, indolência ou displicência se limitam a ler os intermináveis textos que, numa combinação de cores quase invisível, recheiam os diapositivos. E nós  ou tentamos seguir o seu ritmo verbal e recuamos aos tempos em que soletrávamos na instrução primária, ou adiantamo-nos, como num filme em que o som não acompanha as imagens. Pensar que quase todas as aulas do curso de Medicina a que não compareci, seguiam esta técnica, chamemos-lhe eufemisticamente, não diacrónica! Daí a tal questão da sanidade que atrás falava...

Claro, há também os franceses. Eternamente zangados com a língua inglesa oficial que lhes é imposta e mais preocupados com uma, rara, exibição de elegância de raciocínio do que com qualquer inteligibilidade, que lhes pareceria redundante.

speakers lindas, elegantes, atraentes, provocadoras, feias e indefiníveis. Mas o que mais apreciei nas mulheres, nestas circunstancias permitam-me destacar, foi a colocação da voz. A entoação metálica e agressiva da nova-iorquina e a das nossas professoras de liceu, ocupam seguramente os últimos lugares. Num registo sonoro rebentariam com a escala de agudos, a par com os registos dos telhados da velha Lisboa, numa noite de luar em Janeiro. Nesse aspeto as mediterrânicas foram dotadas de vozes mais profundas e sensualmente colocadas. As nórdicas também, mas são incapazes de transmitir o mesmo desassossego.

O humor desempenha um papel importante no lecturing. Ninguém suporta já as anedotas preparadas nem os neurologistas estão muito a vontade a conta-las perante uma audiência. Senão teriam por certo escolhido outra atividade mais rentável... Mesmo que comecem pelo coloquial “Quando vinha para aqui o motorista contou-me...” :ou “ a minha tia que tem demência de Alzheimer...” Se defendo que uma conferencia deva ser preparada até ao limite do pormenor (mesmo que seja um improviso) o humor, esse, aconselho que o deixem fluir espontâneo e natural. Ao assim se proceder há uns fundamentais décimos de segundo em que a expressão do palestrante se ilumina e prende a plateia que fica suspensa das próximas palavras.

Poderia contar alguns destes episódios de humor, ao sabor das intervenções. Mas tentarei relatar apenas um, talvez  de tonalidade hamlética, que ocorreu há anos em Londres. De um lado, como moderador, estava um ainda jovem e conceituado neurologista que não era muito dado a contemporizações. Do outro um velho parceiro de profissão, em fim de carreira. Devo dizer que este famoso neurologista ocupou um volume inteiro do “Brain” ( uma das mais exigentes revistas de neurologia) com vários artigos sobre uma doença que hoje se sabe que não existe. E escreveu muitos volumes, que ocupam uma boa porção da estante, sobre alterações de linguagem, de que actualmente nem uma linha se aproveita. Já na altura deste episódio se encontrava em nítida perda. O tema da conferencia era, lembro-me, a linguagem gestual das pernas. A jovem secretária que lhe transportou a pasta, e as suas longas pernas inglesas na primeira fila, depressa esclareceram a plateia do rationale daquele trabalho científico.
Lembram-se do “Animal moribundo” já falado anteriormente? Pois o doutor MC parecia um dos personagens. O tratamento à próstata aflautava-lhe a voz. Os passos eram incertos e o equilíbrio instável. O discurso era errático e gratuitamente redundante. A decrepitude era total. E o tempo passava, passava cada vez mais lento. A dado momento parece acordar algum laivo de consciência e, encarando o moderador, diz-lhe apologético:

            - I think I am exceeding my time...

Quando se esperava alguma tolerância eis que a resposta surge com uma rapidez e incisão de Jeová:

            - Not only exceeding your time... your are aproaching eternity !  


Esta mesma questão do tempo gerou-me uma situação de embaraço uns anos depois quando em Coimbra moderava uma reunião com a agenda muito apertada e um grande número de oradores. Falava uma colega e amiga de outra Universidade, quando passados os 20 minutos a que tinha direito no programa, lhe propus 2 minutos suplementares para acabar a sua comunicação.
           
            - “Mas eu ainda não passei dos preliminares...” , disse ela com ar de desilusão, não sei se recordando outras situações semelhantes ou acusando-me a precocidade. Demorei alguns segundos a entender que neste caso não se tratava de qualquer desaviso precipitado da natureza, mas apenas das leis físicas da cronometria.


De resto foi aquando das moderações que me aconteceu um pouco de tudo...

continua










domingo, junho 19, 2016



A irmã certa
Não consigo precisar com toda a segurança qual será, cronologicamente, a primeira memória. Lembro-me de uma muito antiga, eu ainda numa cama de grades e ela numa cama livre. Nesse momento terei talvez experimentado o primeiro aguilhão de ciúme (Porque será que esta recordação se coloriu de ternura ao longo dos anos?)
Lembro-me também de ela me ser apontada como exemplo. Mas nunca a encarei como ameaça. Eu sabia que éramos diferentes. Ao cabelo loiro escuro atado num impecável rabo de cavalo só não correspondia, em mim, um cabelo desgrenhado porque mo cortavam à “inglesa curta”. O seu vestido eternamente branco contrastava com a minha camisa fora dos calções onde mal se descortinava a alvura matinal. Os sapatos com terra e lama, consoante por onde deambulasse, e as meias altas caídas assimétricas, contra os irrepreensíveis soquetes claros e os sapatos com brilho.
As brincadeiras calmas e sossegadas com a Rosita dos Pelâmes e as correrias desenfreadas pelos campos e pela rua com o Mário Rui e o Emídio. O assalto ao galinheiro e aos ovos para, depois de lhes abrir um buraco numa precisa ponta de arame, chupar a clara insípida até à gema apetecida: e obrigar o Mário Rui, que a mãe dizia que era fraquinho dos pulmões, a fazer o mesmo, utilizando a enorme desproporção física. Enquanto ela brincava tranquila e quase silenciosa às casinhas com bonecas e tomava o seu chá.
A, ante, após, até, com, contra, de desde... Ainda hoje guardo no mesmo circuito a mesma memória que se me inculcou enquanto ela decorava laboriosamente as preposições. E quando depois de ter aprendido a somar, me fez compreender em breves segundos, que a subtração era apenas a operação inversa o que achei estranhamente simples. Olhava para mim sem entender as incongruências. Porque rasgaria eu as páginas dos livros depois de lidas? Mas não seria eu capaz de ter nem um caderno de sumários? No entanto o que a chocaria mais profundamente seria a minha completa indiferença perante as imposições e a autoridade. O olhar parecia-me revelar tanta surpresa como admiração. Nunca censura ou sobranceria.
Separamo-nos cedo. O casamento e a sua partida ainda quase criança para terras na altura distantes, serviu-me de tema para uma redação que provocou lágrimas na reunião de professores e uma excelente nota a português. Ainda hoje seria capaz de a reproduzir sentimento a sentimento, lágrima a lágrima, não fosse pela lamechice em estado puro que destapava e que o mundo e a cultura viriam a aconselhar-me a disfarçar e a travestir.
Depois as notícias chegavam-me longínquas e indiretas. Quando voltou, transitoriamente fragilizada, algo tinha mudado. Eu sentia-me o irmão mais velho circunstancia mais induzida por ela que reclamada por mim.
Não convivemos muito, mas intensamente. E não se julgue pela descrição anterior que não tem fúrias telúricas (abençoado Gabriel, não anjo bélico como seria apropriado, mas o marido, que a atura). Mas para mim, foi sempre a continuação dos tais dedos cuja ternura atrás descrevi. O regresso sem grades à infância perdida e nela reencontrada.

terça-feira, junho 14, 2016



THEe spur winged goose

"And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee” de John Donne

Quem sair de Durban para sul, seguindo brevemente a costa do Oceano Índico, e depois flectir para o interior, encontrará uma autoestrada incomum que, em vez de cortar e desmembrar a montanha e as colinas, as sobe e desce ao sabor da ação vulcânica do passado e da erosão milenar, ou as contorna propiciando paisagens e visões inabituais, ora calmas ora arrasadoras. E se depois de chegar a Pietermaritzburg, se inflectir ainda mais para o interior de KwaZulu-Natal, por caminhos de terra batida e poeira, cada vez mais estreitos, vai encontrar um vale, rodeado de colinas verdes. Todo este vale pertenceu em tempos a um homem, um inglês sem linhagem e de quem não se conheceu mulher nem filhos. Nem, para dizer a verdade, qualquer outro hábito, vício ou tendência.
Terá substituído alguma carência ou idiossincrasia, talvez, com a sua obsessão pela terra. A versão oficial é que teria comprado com sucesso várias quintas mais pequenas até possuir tudo o que a vista alcança. Penso contudo que esta história “oficial” pouco se coaduna com África, guerras com Zulus e Bóeres, Apartheid e domínio branco.
Para a nossa estória bastará apenas saber que essa vasta zona se chama hoje, em memória a ele, Bayensfield State ou Valley e pertence a uma fundação que se dedica à prática e ao ensino da agricultura. Agora mais mecanizada, ainda que dependente de mão de obra barata mas obscuramente insubmissa.
Foi numa lagoa aí situada, não muito grande, que há 10 anos atrás nasceu THEe spur winged goose.
Destacava-se da dúzia de irmãos, que nadavam instintiva e graciosamente atrás da mãe, pelo seu vulto mais avantajado e a sua aparente inabilidade natural para o movimento. Os seus primeiros voos foram de resto desajeitados com quedas frequentes que a água da lagoa amortecia. Já os irmãos voavam com elegância, ainda ele lutava com menor sucesso contra a gravidade e contra o tamanho desmesurado das suas asas. Nunca chegou a ser um patinho feio mas apenas desajeitado e diferente. Nunca chegou a cisne, como na estória infantil, porque evoluiu para mais do que isso. Nunca foi o Jonathan Livingston Seagull porque não precisava de superação mas apenas de tempo.
Os músculos foram ganhando volume e força. E em cada asa, no preciso ponto onde curvam para trás, começaram a nascer-lhe a desenvolver-se esporões (spur) de considerável dimensão e dureza de aço. Que de resto condiziam com a imponência da sua envergadura e lhe viriam a ser de grande serviço quando lutou, com os outros machos da sua espécie, na escolha da fêmea mais ciosa e luzidia. Sessenta por cento dos SWG são monogâmicos toda a sua vida, percentagem porventura superior à de outras espécies e até, reconheçamo-lo, de outras sociedades mais evoluídas em que a monogamia é imposta não pelo instinto mas pela convenção e pela lei.
Cada batimento de asa correspondia a mais de 12 metros percorridos. Contudo a vida a dois decorreu entre a lagoa e os pastos e culturas, raramente se afastado, e só em situações extremas, do seu local de nascimento.
Voavam os dois solitários e silenciosos como os da sua espécie, o corpo atlético permitindo-lhe o controle do espaço e uma elegância de aristocrata. Quando pousava as longas patas desciam, tocavam a superfície da água e deslizavam suavemente até o seu corpo escuro assentar na água.
Ao contrário dos seu primos com os quais não se misturava, o ganso do Egito, que apesar do seu menor tamanho grasnavam constantemente e se atiravam inelegantemente para a água em grande estardalhaço.
Mas a natureza tem os seus predadores naturais. Dias ou semanas antes do nosso encontro um dos trabalhadores locais encontrou um maciço de penas que marcava, tristemente, a morte da sua companheira, menos ágil com a idade, por um desses predadores. Um chacal dizia o local com a sua experiencia de observação prática da vida no campo.
E ficou só e incompleto. Não que a pulsão sexual o incomodasse. Ao contrário do que outras espécies admitem, as gónadas vão-se atrofiando evitando-lhe embaraços e comportamentos mais grotescos
Fez então o impensável. Esconder a sua solidão no meio dos seus primos plebeus e grasnadores.
E assim o encontrei, numa manhã que despontava, incendiando o monte por trás do vale, no meio dos outros barulhentos parceiros de circunstância. Um solitário grande e aristocrático que se destacava. Vi-o de imediato. Para além da negrura habitual do corpo trazia outra etérea e indefinida que apagava como um nimbo a luz nascente à sua volta.
Quando me detectou no meio da fuga atabalhoada e atroada dos seus acompanhantes que dispersavam em todas as direções, limitou-se a aumentar talvez ainda mais a velocidade.
Apontei, avancei e disparei. Não com emoção mas como que cumprindo o destino. Ainda apreciei aquele momento de paragem no tempo. Depois virei os olhos para o não ver cair. Ouvi o barulho cavo da sua queda. E senti o chão tremer dentro de mim...

PS

Carolina Cunha não perguntes por quem os sinos dobram?
Carolina Cunha (havia esse livro na estante, e eu perguntava sempre.)
Luis Cunha “And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee” de John Donne século XVIII. Aproveitado e citado depois em 1940 por Hemmimgway . Imagino que o livro que te lembres seja do último. Por quem os sinos dobram...
GostoResponder113/6 às 12:29Editado