terça-feira, junho 14, 2016



THEe spur winged goose

"And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee” de John Donne

Quem sair de Durban para sul, seguindo brevemente a costa do Oceano Índico, e depois flectir para o interior, encontrará uma autoestrada incomum que, em vez de cortar e desmembrar a montanha e as colinas, as sobe e desce ao sabor da ação vulcânica do passado e da erosão milenar, ou as contorna propiciando paisagens e visões inabituais, ora calmas ora arrasadoras. E se depois de chegar a Pietermaritzburg, se inflectir ainda mais para o interior de KwaZulu-Natal, por caminhos de terra batida e poeira, cada vez mais estreitos, vai encontrar um vale, rodeado de colinas verdes. Todo este vale pertenceu em tempos a um homem, um inglês sem linhagem e de quem não se conheceu mulher nem filhos. Nem, para dizer a verdade, qualquer outro hábito, vício ou tendência.
Terá substituído alguma carência ou idiossincrasia, talvez, com a sua obsessão pela terra. A versão oficial é que teria comprado com sucesso várias quintas mais pequenas até possuir tudo o que a vista alcança. Penso contudo que esta história “oficial” pouco se coaduna com África, guerras com Zulus e Bóeres, Apartheid e domínio branco.
Para a nossa estória bastará apenas saber que essa vasta zona se chama hoje, em memória a ele, Bayensfield State ou Valley e pertence a uma fundação que se dedica à prática e ao ensino da agricultura. Agora mais mecanizada, ainda que dependente de mão de obra barata mas obscuramente insubmissa.
Foi numa lagoa aí situada, não muito grande, que há 10 anos atrás nasceu THEe spur winged goose.
Destacava-se da dúzia de irmãos, que nadavam instintiva e graciosamente atrás da mãe, pelo seu vulto mais avantajado e a sua aparente inabilidade natural para o movimento. Os seus primeiros voos foram de resto desajeitados com quedas frequentes que a água da lagoa amortecia. Já os irmãos voavam com elegância, ainda ele lutava com menor sucesso contra a gravidade e contra o tamanho desmesurado das suas asas. Nunca chegou a ser um patinho feio mas apenas desajeitado e diferente. Nunca chegou a cisne, como na estória infantil, porque evoluiu para mais do que isso. Nunca foi o Jonathan Livingston Seagull porque não precisava de superação mas apenas de tempo.
Os músculos foram ganhando volume e força. E em cada asa, no preciso ponto onde curvam para trás, começaram a nascer-lhe a desenvolver-se esporões (spur) de considerável dimensão e dureza de aço. Que de resto condiziam com a imponência da sua envergadura e lhe viriam a ser de grande serviço quando lutou, com os outros machos da sua espécie, na escolha da fêmea mais ciosa e luzidia. Sessenta por cento dos SWG são monogâmicos toda a sua vida, percentagem porventura superior à de outras espécies e até, reconheçamo-lo, de outras sociedades mais evoluídas em que a monogamia é imposta não pelo instinto mas pela convenção e pela lei.
Cada batimento de asa correspondia a mais de 12 metros percorridos. Contudo a vida a dois decorreu entre a lagoa e os pastos e culturas, raramente se afastado, e só em situações extremas, do seu local de nascimento.
Voavam os dois solitários e silenciosos como os da sua espécie, o corpo atlético permitindo-lhe o controle do espaço e uma elegância de aristocrata. Quando pousava as longas patas desciam, tocavam a superfície da água e deslizavam suavemente até o seu corpo escuro assentar na água.
Ao contrário dos seu primos com os quais não se misturava, o ganso do Egito, que apesar do seu menor tamanho grasnavam constantemente e se atiravam inelegantemente para a água em grande estardalhaço.
Mas a natureza tem os seus predadores naturais. Dias ou semanas antes do nosso encontro um dos trabalhadores locais encontrou um maciço de penas que marcava, tristemente, a morte da sua companheira, menos ágil com a idade, por um desses predadores. Um chacal dizia o local com a sua experiencia de observação prática da vida no campo.
E ficou só e incompleto. Não que a pulsão sexual o incomodasse. Ao contrário do que outras espécies admitem, as gónadas vão-se atrofiando evitando-lhe embaraços e comportamentos mais grotescos
Fez então o impensável. Esconder a sua solidão no meio dos seus primos plebeus e grasnadores.
E assim o encontrei, numa manhã que despontava, incendiando o monte por trás do vale, no meio dos outros barulhentos parceiros de circunstância. Um solitário grande e aristocrático que se destacava. Vi-o de imediato. Para além da negrura habitual do corpo trazia outra etérea e indefinida que apagava como um nimbo a luz nascente à sua volta.
Quando me detectou no meio da fuga atabalhoada e atroada dos seus acompanhantes que dispersavam em todas as direções, limitou-se a aumentar talvez ainda mais a velocidade.
Apontei, avancei e disparei. Não com emoção mas como que cumprindo o destino. Ainda apreciei aquele momento de paragem no tempo. Depois virei os olhos para o não ver cair. Ouvi o barulho cavo da sua queda. E senti o chão tremer dentro de mim...

PS

Carolina Cunha não perguntes por quem os sinos dobram?
Carolina Cunha (havia esse livro na estante, e eu perguntava sempre.)
Luis Cunha “And therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee” de John Donne século XVIII. Aproveitado e citado depois em 1940 por Hemmimgway . Imagino que o livro que te lembres seja do último. Por quem os sinos dobram...
GostoResponder113/6 às 12:29Editado


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