“La vida no es la que uno vivió, sino la que
uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”
Habituado que estou a uma produção científica regular, a
sensação que tenho ao escrever sobre qualquer outro assunto, sobretudo as
memórias mais ou menos ficcionadas, é de uma fresca emersão num espaço de
liberdade. Fora da tirania das referencias, que no primeiro caso têm de ser
exaustivas e fiéis, permito-me agora escrever e falar dos livros como os
recordo, como os vivi ou mesmo como foram evoluindo no meu inconsciente, para
além dos limites que os próprios autores admitiriam. E, não sendo um
intelectual, fica-me uma outra oportunidade de remição. A de referir os livros
pela ordem que quero, dar-lhes a hierarquia que me apetece. Esquecer-me ou não
abordar livros que não me marcaram ou que nem li. Ou seja, desobriga-me da
sapiência.
Permite-me ainda, se me apetecer, escrever sem precisar de usar aspas e não ser escravo circunscrito da
cultura. Escolher aleatoriamente as recordações de uma vida já longa, dividida
entre a parte lúdica e de trabalho, sem a necessidade de ser entendido pela
lógica, mas com alguma esperança de partilhar a emoção.
(A propósito, quatro ou cinco anos atrás, duas das minhas colaboradoras
mais graduadas e amigas foram buscar-me de noite, a uma casa na periferia da
cidade, rodeada de pinhais, onde vivia quase sempre só, para um internamento e
intervenção cirúrgica que podiam ser os últimos. Apesar da enorme experiência
que ambas tinham em lidar, dia a dia, com a doença e a morte, não conseguiram disfarçar
as lágrimas provocadas por um último olhar de rotina que deitei à casa e que lhes pareceu uma despedida.
- “Aconteça
o que acontecer foi uma vida cheia. Cheguei onde queria na profissão, cacei em
todos os lugares que sonhava e tive mulheres lindas.” Disse enquanto transpunha
a porta da rua.
Estas palavras, ditas mais para mim do que para elas, provocaram a habitual reação, entre o
divertimento e a censura, como de resto todas as minhas tiradas de vulgar
misógino de circunstância. Que têm pelo menos o condão de secar qualquer
lágrima feminina.)
Mas porque a vida dá,
por vezes e como foi o caso, mais que uma hipótese, satisfaz-me hoje saber que
naquela altura, embora sem fugir à verdade, não lhes revelei tudo. É que tive,
e vou tendo, muito mais do que isso.
Tenho as memórias de uma infância feliz. De uma escolaridade
serena, depois de descontadas as dificuldades de uma dislexia de
desenvolvimento, ainda pouco divulgada na época, no primeiro contacto com as
letras. Ou, melhor dizendo, na junção das letras em palavras. E um diagnóstico mais
precoce que precipitado da minha primeira professora primária. Ter-me-ia,
segundo ela, desenvolvido demais fisicamente o que irremediavelmente condicionaria uma limitação intelectual. Como
um eucalipto talvez, diria eu. A esta senhora, cuja cara recordo perfeitamente,
aliás parecida com a do seu filho, um cantor de esquerda agora em fim de
carreira, a esta Senhora devo uma merecida homenagem. Terá sido a única pessoa,
até agora, que não sobrestimou e não se deixou iludir pelas minhas capacidades.
Relembro ainda uma vida profissional desbravada com
facilidade num carrossel de múltiplos exames e concursos, com urgências,
consultas e enfermaria nos intervalos. Com uma investigação clínica, sobretudo
na área de experimentação de novas drogas, longa e duplamente gratificante. E
já agora suficiente em termos de “glamour” e reconhecimento. E, ainda, em criticas
e críticos.
Mas também omiti nessa noite que rejuvenesci a cada revoada
semestral de alunos, depois do silencio pesado das férias. Que revivi os meus
20-30 anos, anualmente, em cada recepção aos novos internos, que me
reconciliavam com os doentes e com a Neurologia. Que me estabilizei todos os dias em cada apoio
recebido da equipa, cada vez mais vasta, e em cada luta ultrapassada.
A alusão ao trabalho estava pois correta. Quanto à caça
alguns dos escritos anteriores também o poderão confirmar. O problema como é
lógico, surge ao tentar justificar a bravata que disse em relação às mulheres.
Interroguei-me
muitas vezes por que teria Garcia Marquez terminado a sua biografia quase no
momento exato em conheceu a paixão e a mulher da sua vida, Mercedes. Como se se
tivesse esgotado. Quando antes tinha discorrido livremente sobre os perigos da
sua relação com Alexandrina e, sem pudor, descrito as suas passagens carinhosas, libidinosas e mais que
ocasionais por “las
bandidas” de los burdeles de
Barranquilla.
Hoje creio perceber que há um momento de viragem do antes e
do depois do Amor. Não como algo a mover-se para tudo ficar na mesma, como diz
Tomasi de Lampedusa a propósito do fim de uma situação de privilégio da
nobreza. É mais a nobreza de algo em que tudo permanece mas que nos permite o privilégio
de reconstruir o passado e sonhar
descaradamente com infinitos cenários de futuro.
Algo assim, tão intenso que distorce o tempo, impossibilita também
que se conte a sua história. Porque não há presente onde essa história se
apoie. Não há passado porque está a ser rescrito. Não há futuro porque não há
vontade de escolher da míriada de cenários.
Percebi então o pudor de GGM em descrever o Amor, no momento em
que ele nos atinge e também, digo eu, enquanto ele em nós perdura.
Eu também não o conseguirei. Pelo menos enquanto as mimosas
temporãs continuarem a florir em Fevereiro. Enquanto o sol continuar a nascer
por trás da “house of rising sun”. Enquanto um beijo de um neto ou uma
expressão, contrariada que seja, de um filho, a revive.
Restam-me assim, para sustentar a prosápia anterior, os outros
“amores”. Seguramente filhos de um deus menor incapazes de distorcer o tempo
porque decorrem apenas no espaço da vida. Mas assim mesmo importantes.
(Se estivesse no início de uma conferencia teria de apresentar
por lei, e agora mesmo, um “disclamer” enumerando os meus interesses passados e
presentes na matéria. Ao contrário do que todos fazem, e porque já não estou
sob a tutela asfixiante da “evidence based medicine” ,não vou recorrer ao
expediente de passar o quadro tão depressa que ninguém tem tempo de o ler. Recomendo
mesmo que não se fiquem apenas por estas estrofes de Pablo Neruda.
E agora começam os grandes dilemas. O primeiro é o da idade
e da decadência dos autores quando
escrevem de amores.
Os românticos, sonhadores mágicos como Garcia Marquez , tentam
transportar as memórias para o tempo presente. Escrevem livros cheios de
ternura ridícula, inconsequente e apenas idealizada. Falta-lhe o viço, a
juventude e seguramente outras coisas. É uma espécie de inversão total do Édipo
em que ele, à falta de desejo, se transfigura em mãe.
Roth começou por seguir um caminho paralelo mas não
convergente. O “Animal moribundo” de um doente quase terminal de doença
prostática e penso que de uma jovem sul-americana de sonho. A incontinência do
personagem dá bem ideia da sua impotência e falhada sublimação.
Em comum têm o facto de indiscutivelmente gostarem de
mulheres. Um capaz de esperar 100 anos. Outro com a urgência e algum do pragmatismo
judaico.
Penso que no final ganhou largamente a ironia, transformada
em cinismo mais brilhante que mórbido de Roth. Que fica a dever o êxito da sua
reabilitação não apenas a si próprio mas também à soberana interpretação de Al
Pacino. É evidente que nos referimos a“
A Humilhação”.
Definido um dos caminhos por onde não quero ir depara-se-me
um outro problema.
“A sensação de que incidentes casuais e
acontecimentos externos têm um significado particular e incomum, específico
para a pessoa”, assim define a psiquiatria a ideia de referência.
Esta circunstância que todos nós já
experimentamos está exacerbada nos paranoicos e nas vítimas de traição.
Na mulher normal diria que é mais subtil, menos
intensa, mas mais frequente. Podem chamar-lhe sexto sentido. Pode-se chamar presunção.
Eu acho sublime, no seu significado e naquilo que revela da relação com os
outros.
Isso, as ideias de referencia, acontecerão
inexoravelmente com aquilo que um dia, e se vier a propósito, escreverei. Vou
tentar evita-las, sem esperança de sucesso ou mesmo temendo o resultado
contrário.
Vem-me
à memória as “Conversas n”a Catedral” de Vargas Llosa
em que a trama saltita de grupo em grupo, de
pessoa em pessoa, de uma época à outra, isto tudo na mesma frase, no mesmo
parágrafo, sem nenhuma explicação nem roteiro que nos guie. Poderei tentar
seguir o estilo e descrever apenas uma (a) mulher, o ser mais parecido com a
técnica estonteante de Llosa. Só que no fim todo o seu romance faz sentido. No
fim a minha estória acabará, estou certo, numa enorme confusão. Se isso
acontecer é porque tive êxito em descrever a minha relação com a mulher.