terça-feira, maio 24, 2016

“La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”

Habituado que estou a uma produção científica regular, a sensação que tenho ao escrever sobre qualquer outro assunto, sobretudo as memórias mais ou menos ficcionadas, é de uma fresca emersão num espaço de liberdade. Fora da tirania das referencias, que no primeiro caso têm de ser exaustivas e fiéis, permito-me agora escrever e falar dos livros como os recordo, como os vivi ou mesmo como foram evoluindo no meu inconsciente, para além dos limites que os próprios autores admitiriam. E, não sendo um intelectual, fica-me uma outra oportunidade de remição. A de referir os livros pela ordem que quero, dar-lhes a hierarquia que me apetece. Esquecer-me ou não abordar livros que não me marcaram ou que nem li. Ou seja, desobriga-me da sapiência.
Permite-me ainda, se me apetecer, escrever sem precisar de  usar aspas e não ser escravo circunscrito da cultura. Escolher aleatoriamente as recordações de uma vida já longa, dividida entre a parte lúdica e de trabalho, sem a necessidade de ser entendido pela lógica, mas com alguma esperança de partilhar a emoção.

(A propósito, quatro ou cinco anos atrás, duas das minhas colaboradoras mais graduadas e amigas foram buscar-me de noite, a uma casa na periferia da cidade, rodeada de pinhais, onde vivia quase sempre só, para um internamento e intervenção cirúrgica que podiam ser os últimos. Apesar da enorme experiência que ambas tinham em lidar, dia a dia, com a doença e a morte, não conseguiram disfarçar as lágrimas provocadas por um último olhar de rotina que deitei à casa  e que lhes pareceu uma despedida.

            - “Aconteça o que acontecer foi uma vida cheia. Cheguei onde queria na profissão, cacei em todos os lugares que sonhava e tive mulheres lindas.” Disse enquanto transpunha a porta da rua.

Estas palavras, ditas mais para mim do que para elas,  provocaram a habitual reação, entre o divertimento e a censura, como de resto todas as minhas tiradas de vulgar misógino de circunstância. Que têm pelo menos o condão de secar qualquer lágrima feminina.)

 Mas porque a vida dá, por vezes e como foi o caso, mais que uma hipótese, satisfaz-me hoje saber que naquela altura, embora sem fugir à verdade, não lhes revelei tudo. É que tive, e vou tendo, muito mais do que isso.


Tenho as memórias de uma infância feliz. De uma escolaridade serena, depois de descontadas as dificuldades de uma dislexia de desenvolvimento, ainda pouco divulgada na época, no primeiro contacto com as letras. Ou, melhor dizendo, na junção das letras em palavras. E um diagnóstico mais precoce que precipitado da minha primeira professora primária. Ter-me-ia, segundo ela, desenvolvido demais fisicamente o que irremediavelmente  condicionaria uma limitação intelectual. Como um eucalipto talvez, diria eu. A esta senhora, cuja cara recordo perfeitamente, aliás parecida com a do seu filho, um cantor de esquerda agora em fim de carreira, a esta Senhora devo uma merecida homenagem. Terá sido a única pessoa, até agora, que não sobrestimou e não se deixou iludir pelas minhas capacidades.

Relembro ainda uma vida profissional desbravada com facilidade num carrossel de múltiplos exames e concursos, com urgências, consultas e enfermaria nos intervalos. Com uma investigação clínica, sobretudo na área de experimentação de novas drogas, longa e duplamente gratificante. E já agora suficiente em termos de “glamour” e reconhecimento. E, ainda, em criticas e críticos.


Mas também omiti nessa noite que rejuvenesci a cada revoada semestral de alunos, depois do silencio pesado das férias. Que revivi os meus 20-30 anos, anualmente, em cada recepção aos novos internos, que me reconciliavam com os doentes e com a Neurologia. Que me  estabilizei todos os dias em cada apoio recebido da equipa, cada vez mais vasta, e em cada luta ultrapassada.

A alusão ao trabalho estava pois correta. Quanto à caça alguns dos escritos anteriores também o poderão confirmar. O problema como é lógico, surge ao tentar justificar a bravata que disse em relação às mulheres.


Interroguei-me muitas vezes por que teria Garcia Marquez terminado a sua biografia quase no momento exato em conheceu a paixão e a mulher da sua vida, Mercedes. Como se se tivesse esgotado. Quando antes tinha discorrido livremente sobre os perigos da sua relação com Alexandrina e, sem pudor, descrito as suas  passagens carinhosas, libidinosas e mais que ocasionais por  “las bandidas” de los burdeles  de Barranquilla.

Hoje creio perceber que há um momento de viragem do antes e do depois do Amor. Não como algo a mover-se para tudo ficar na mesma, como diz Tomasi de Lampedusa a propósito do fim de uma situação de privilégio da nobreza. É mais a nobreza de algo em que tudo permanece mas que nos permite o privilégio de  reconstruir o passado e sonhar descaradamente com infinitos cenários de futuro.

Algo assim, tão intenso que distorce o tempo, impossibilita também que se conte a sua história. Porque não há presente onde essa história se apoie. Não há passado porque está a ser rescrito. Não há futuro porque não há vontade de escolher da míriada de cenários.

Percebi então o pudor de GGM em descrever o Amor, no momento em que ele nos atinge e também, digo eu, enquanto ele em nós perdura.

Eu também não o conseguirei. Pelo menos enquanto as mimosas temporãs continuarem a florir em Fevereiro. Enquanto o sol continuar a nascer por trás da “house of rising sun”. Enquanto um beijo de um neto ou uma expressão, contrariada que seja, de um filho, a revive.





Restam-me assim, para sustentar a prosápia anterior, os outros “amores”. Seguramente filhos de um deus menor incapazes de distorcer o tempo porque decorrem apenas no espaço da vida. Mas assim mesmo importantes.

(Se estivesse no início de uma conferencia teria de apresentar por lei, e agora mesmo, um “disclamer” enumerando os meus interesses passados e presentes na matéria. Ao contrário do que todos fazem, e porque já não estou sob a tutela asfixiante da “evidence based medicine” ,não vou recorrer ao expediente de passar o quadro tão depressa que ninguém tem tempo de o ler. Recomendo mesmo que não se fiquem apenas por estas estrofes de Pablo Neruda.

Text Box: He vivido tanto que un día 
tendrán que olvidarme por fuerza, 
borrándome de la pizarra:
mi corazón fue interminable.
Pero porque pido silencio 
no crean que voy a morirme:
me pasa todo lo contrario:
sucede que voy a vivirme.












E agora começam os grandes dilemas. O primeiro é o da idade e da decadência dos autores  quando escrevem de amores.

Os românticos, sonhadores mágicos como Garcia Marquez , tentam transportar as memórias para o tempo presente. Escrevem livros cheios de ternura ridícula, inconsequente e apenas idealizada. Falta-lhe o viço, a juventude e seguramente outras coisas. É uma espécie de inversão total do Édipo em que ele, à falta de desejo, se transfigura em mãe.

Roth começou por seguir um caminho paralelo mas não convergente. O “Animal moribundo” de um doente quase terminal de doença prostática e penso que de uma jovem sul-americana de sonho. A incontinência do personagem dá bem ideia da sua impotência e falhada sublimação.

Em comum têm o facto de indiscutivelmente gostarem de mulheres. Um capaz de esperar 100 anos. Outro com a urgência e algum do pragmatismo judaico.

Penso que no final ganhou largamente a ironia, transformada em cinismo mais brilhante que mórbido de Roth. Que fica a dever o êxito da sua reabilitação não apenas a si próprio mas também à soberana interpretação de Al Pacino. É evidente que nos referimos  a“ A Humilhação”.

Definido um dos caminhos por onde não quero ir depara-se-me um outro problema.

“A sensação de que incidentes casuais e acontecimentos externos têm um significado particular e incomum, específico para a pessoa”, assim define a psiquiatria a ideia de referência.

Esta circunstância que todos nós já experimentamos está exacerbada nos paranoicos e nas vítimas de traição.

Na mulher normal diria que é mais subtil, menos intensa, mas mais frequente. Podem chamar-lhe sexto sentido. Pode-se chamar presunção. Eu acho sublime, no seu significado e naquilo que revela da relação com os outros.

Isso, as ideias de referencia, acontecerão inexoravelmente com aquilo que um dia, e se vier a propósito, escreverei. Vou tentar evita-las, sem esperança de sucesso ou mesmo temendo o resultado contrário.

Vem-me à memória as “Conversas n”a Catedral” de Vargas Llosa

em que a trama saltita de grupo em grupo, de pessoa em pessoa, de uma época à outra, isto tudo na mesma frase, no mesmo parágrafo, sem nenhuma explicação nem roteiro que nos guie. Poderei tentar seguir o estilo e descrever apenas uma (a) mulher, o ser mais parecido com a técnica estonteante de Llosa. Só que no fim todo o seu romance faz sentido. No fim a minha estória acabará, estou certo, numa enorme confusão. Se isso acontecer é porque tive êxito em descrever a minha relação com a mulher.




quinta-feira, maio 19, 2016



UMA CAÇADA AOS PATOS


O sol não emergira ainda, mal se adivinhando, por uma claridade difusa e fria, o seu futuro trajeto. Do outro lado, num escuro impenetrável, o ruído inconfundível da marcha dos cavalos. Que só a curta distancia se materializam com o seu volume, o cheiro a suor e a couro das selas e dos arreios.
O esforço, já difícil, pé no limite do estribo e o impulso, seguido daquela sensação de insegurança e excitação com o corpo moldando-se quase atavicamente à sela e ao movimento.
Os primeiros passos, ainda em terra firme, em simbiose, guiados um pelo instinto outro pela confiança. Pouco depois um espelho de água que as patas ferradas partem repetidamente, acabando com cintilação reflexa das estrelas e aumentado a escuridade. E a modificação do som dos passos: o chapinhar esforçado dos cascos vencendo a lama, a água e a distancia. Os juncos altos que vão surgindo em ilhas cada vez mais cerradas são, enquanto possível, contornados laboriosamente. O Hugo, à nossa frente, vai-as evitando e liderando o pequeno grupo. Agora as ilhas de junco agregam-se num imenso e negro plasma que vamos a custo atravessando e que quase nos arranca da sela.
Pouco a pouco o pântano vai acordando. Primeiro num rápido e impreciso bater de asas de algo que se levanta para logo se esconder. Depois um canto tímido, quase envergonhado, vai ganhando vulto e companhia até se completar numa sinfonia imperfeita que nos envolve num abraço de vida.
Adivinha-se agora o nascer do sol por uma cor mais vermelha e por um arrepio de frio que atravessa o ar.
O cavalo mantem-se no seu ritmo irregular, quase dançando ao som da tal sinfonia imperfeita. Fecho os olhos tentando perceber se é sonho ou talvez tentando não acordar nem mesmo entender.
A opressão no peito, agora benigna, apaga todas as outras de um passado muito próximo.
O ganso! O cantar do ganso...atinge-me com seu tom roufenho e algo ridículo e suaviza todas as palavras, todas as dúvidas e todas as questões acumuladas nos últimos seis meses.

 E enquanto o primeiro raio de sol cintila numa lágrima feliz que adivinhou no canto do olho....compreendo  que, com ou sem sonho, com ou sem dúvidas, medos ou perguntas, o coração do pântano bate pelo meu, o seus sons ritmizam-se ao sabor da paz, da tal sinfonia que de tão melódica se fez imperfeita.
Atravessamos agora uma vasta extensão de água, sem limites, sem obstáculos, sem luzes nem sombras.
E escuta-se o primeiro tiro.

sexta-feira, maio 13, 2016



O Dr. Mário
(parte 1)
Desde o “velho Dr. Cunha”, contemporâneo de Júlio Dinis que procurava nessa altura alívio para a sua tuberculose no clima marítimo de Ovar escrevendo as “Pupilas do Senhor Reitor” e também do Eça, que se refere aos seus serões musicais, bem aproveitados pelo seu personagem Artur Corvelo para fins mais carnais, desde o tempo do “velho Dr. Cunha” dizia eu, todos os seus descendentes em linha direta, médicos como ele, ficaram conhecidos apenas pelo primeiro nome. O Dr. Salviano. O Dr. Mário e o Dr. Rui. E eu claro, que ainda tive o privilégio de ser identificado como o Dr. Luís. Infelizmente não consegui transmitir esse invejável estatuto aos que poderiam vir a ser o Dr. Gil e Dr.ª Carlota por razões que contarei em seguida. São 5 ou 6 gerações de médicos numa transmissão comprovadamente autossómica dominante de altíssima penetração.
Não foi fácil, no início, o envolvimento e cumplicidade que vim, mais tarde, a desenvolver com o meu pai. Os primeiros anos foram influenciados pela forte e quase exclusiva ligação à minha mãe como já atrás referi.
O meu pai provinha de uma família com nítida ascendência nórdica, loira e de olhos verdes, de Vikings que colonizaram o norte da Ria, onde não se gostava de mostrar os sentimentos. Uma eventual relação seria, estou certo, trucidada pela truculência meridional da minha mãe. E também, embora dito com a melhor das intenções, pelo endeusamento que os seus doentes me comunicavam amiúde na rua, já que, como filho, preferiria talvez um pai e não um santo ou um anjo como a ele frequentemente se referiam.
Na maior parte do tempo da minha infância parecia que nos ignorávamos educada e deliberadamente.
E se as coisas melhoraram ligeiramente, quando por impulso, numa decisão de último instante e ainda com 16 anos me matriculei em medicina, a “entente cordial” ter-se-á mantido apenas até à escolha da especialidade.
Durante 4 talvez 5 gerações tínhamos sido médicos de clínica geral, com enorme dedicação ao doente, partilhando com eles a vida, a doença, os momentos de glória, o nascimento e a morte. Durante gerações houve famílias que não conheceram outros médicos nem outros apelidos. Eu iria quebrar a corrente, um elo definitivamente solto numa história incomum, construída com enorme dedicação. O fórceps iria ficar na sua caixa estilizada de madeira nobre. O consultório mais que centenário ficaria deserto. (Ainda hoje é visitável e permanece conservado em memória a esse legado que eu tão levianamente, na sua opinião, teria desprezado.)
Mais grave ainda: a minha escolha tinha recaído na Neurologia. Um teatro de pedantismo alimentado pelas notícias das “leçons du mardi” do Charcot que guardadas pelo meu bisavô e encadernadas em couro com letras douradas, a mim vieram parar mais de um século depois. Talvez como um aceno ao mesmo tempo conivente e irónico ao seu relapso descendente.
Que opinião poderia ter um clínico de província desses presumidos, que utilizavam um exame neurológico que mais parecia um ato de pantomina e que tinham um prazer quase orgástico em diagnósticos elaborados e brilhantes que ninguém em vida podia confirmar?
Que serviam apenas para intermináveis discussões, entre iluminados, já que não conseguiam tratar ninguém. E quando porventura acertavam as consequências seriam mais comparáveis a um polícia sinaleiro que a um médico que deveria ter o tratamento e não o diagnóstico como prioridade final. Este passa, a natureza vai cura-lo. Este vira à esquerda, vai ficar miseravelmente diminuído, mas sobrevive. Este termina aqui o seu percurso.
Um Homem sorri à morte – com meia cara, (narrativa autobiográfica de José Rodrigues Miguéis) foi publicado pela primeira vez em 1959 e ainda estava muito fresco nas memórias. Assim como a transcrição que nele faz de um longo monólogo decorrido durante a visita à enfermaria onde o Miguéis jazia em estado grave. O Professor, um famoso neurologista americano, Houston Merritt, perto do seu leito explica á multidão de assistentes embevecidos as razões porque aquele doente iria morrer passadas 3 semanas. O que obviamente não aconteceu.
Pedantismo, exibicionismo, imodéstia e inutilidade eram os componentes da imagem que meu pai antevia para mim. Ou seja o inverso de características familiares que julgava já geneticamente transmissíveis.
Mas decorria a parte final da década de 70 e a Neurologia era uma especialidade muito atenta e ávida de todas as evoluções de outras ciências mesmo básicas que cresciam em seu redor. Começou nessa época a aproveitar-se da bioquímica, da genética, da imagiologia... De tal forma que no tempo presente é preciso recordar amiúde aos mais jovens formandos que tratamos doentes e não bio-marcadores ou RM!
Escoava-se ainda a ultima metade da década de 70. O meu cabelo era comprido, usava uns óculos de intelectual que talvez não precisasse inteiramente e imitava descaradamente os meus mestres ingleses- na postura, na roupa e na maneira aparentemente dócil de falar- quando voei até Ovar para umas férias de Natal.
Ora um dos sítios preferidos do meu pai, quando não estava na casa dos doentes ou no consultório, era o Hospital. Convidou-me para aí o acompanhar e poderia, talvez, dar a minha opinião sobre alguns doentes que lá se encontravam internados.
O primeiro caso era uma Acidente Vascular Cerebral. Banal, frequente e evidente como diagnóstico. Podia ter ficado por aí. Mas a tal vaidade exibicionista ainda existia em mim e não estou certo que alguma vez tenha desaparecido. Vi as suas pupilas desiguais, uma ligeiríssima queda da pálpebra á esquerda como se estivesse com sono só desse lado. Uma falta de sensibilidade na face e do hemicorpo do outro lado como num “patchwork”. Descoordenação na mão novamente á esquerda.
E da miríade complexa das centenas de artérias que nos irrigam o cérebro escolhi uma, pequena e escondida por trás de rochedos e nuca.
- “O doente tem uma obstrução da PICA. (posterior inferior cerebelar artery).
- “E como se trata” perguntou o meu pai , aqueles olhos verdes com um lampejo de esperança.
-
- “Da mesma maneira que os outros AVC, com aspirina” respondi antecipando já o desvio daqueles olhos para um refúgio de desilusão e de certeza.
Conta-se que Napoleão (o ídolo insubstituível dos bipolares antes do aparecimento do Marcelo) quando entrevistava um candidato á nomeação para general passava superficialmente na revisão dos feitos e obras e terminava com uma pergunta definitiva:
- Sim, mas é um homem de sorte ?
Ora se houvesse um Napoleão na Neurologia ( eu conheci um, do Porto, mas a estória ficará para outra ocasião se achar que vale a pena contar) na resposta à sacramental pergunta eu teria que responder com um veemente sim, como veremos em seguida.
E na nossa visita ao hospital passamos á doente seguinte. Quando a vi o meu coração ainda saudável e forte ...
Continua


O Dr. Luís
Era uma jovem de pouco mais de 20 anos com um cabelo de uma cor mais arruivada que loira, a pele muito branca salpicada com sardas de castanho claro mesclado com o vermelho rosado, que seria linda não fosse o desalinho geral em que se encontrava. Os olhos, a minha primeira preocupação quando observo um doente, mal se conseguiam adivinhar por baixo de umas pálpebras quase completamente descidas como duas persianas que permitem apenas o filtrar de uma ténue claridade.
(Convém aqui salientar que uma das características de muitas doenças neurológicas é a sua visibilidade. Pode um doente andar a passear a sua angina de peito por terreno plano: pode outro ainda ter um tumor do mais maligno no pulmão e passam por nós na rua e não nos apercebemos de qualquer mal, por mais que obstinadamente os analisemos. Mas a vitima de um AVC, de meio centímetro que seja, ou um doente com movimentos anormais com lesões ainda mais micrométricas, só visíveis a microscópio, serão detectáveis de um lado para o outro da rua enquanto esperamos a mudança do semáforo. Um olhar treinado pode mesmo fazer o diagnostico correto.)
Essa a razão porque já sabia de que doença sofria a jovem. As perguntas que lhe fiz (começou por ver a dobrar? tem dificuldade em engolir? Cansa-se facilmente?) foram apenas de ostentação retórica pois já sabia a resposta a cada uma delas, dada numa voz estranha como se todo o ar lhe passasse diretamente das cordas vocais para o nariz. O exame de fadiga muscular mostrou que os globos oculares não suportavam por muito tempo o olhar para cima, começando a descer cada um deles separadamente como que exaustos e desinteressados um do outro.
Ao pedir para contar até vinte a sua voz ia progressivamente enfraquecendo até que se tornava inaudível . O mesmo se passava na deglutição. Aos primeiros golos de água tudo parecia normal mas depois começava a engasgar-se e o líquido saia-lhe pelas narinas. O mesmo cansaço era demonstrável na parte superior dos membros. Mas, o mais preocupante, era a fraqueza do músculos respiratórios que prenunciavam um risco de vida para a doente que, a nada ser feito, morreria dentro de horas em asfixia em plena posse do seu estado de consciência. Tinha uma miastenia gravis (atualmente, e com o progresso da terapêutica, este adjetivo foi retirado do nome da doença) e estava em crise miasténica e isso transforma o mais pedante neurologista num médico.
(Todavia não são os neurologistas os presunçosos únicos da medicina. Tenho-os encontrado noutras especialidades e os que se dedicam à história da Medicina não serão os mais inocentes. Consideram eles que a primeira descrição da doença é bíblica e estará, se a soubermos procurar, no Livro dos Juízes. Sansão quando foi amarrado á coluna do templo estaria em crise miasténica e daí a sua incapacidade de reagir. No decurso da doença, o seu perfil temporal, é frequentemente flutuante com agravamentos e remissões às vezes espontâneas. No caso dele assim aconteceu. O resto da história, quando recuperou a sua força, é do conhecimento de todos. Apenas Salomé viu agravarem-se ainda mais os seus pecados já que, à traição, juntou um erro indigno sobre a causa da doença que nada teria a ver com os cabelos do Sansão que ela maliciosamente cortou.)
( E como gostam os homens de glosar com estas “certezas”, femininas, quando estas se revelam inadequadas.)
Mas a neurologia é uma especialidade generosa e aliciante que, mesmo não servindo para resolver o problema anterior, nos conduz, se soubermos o caminho, diretamente das queixas do doente até à localização da doença. Neste caso o problema estava na dificuldade dos nervos motores induzirem a contração muscular. Nervo e músculo não têm qualquer contacto direto. O nervo liberta uma substância que percorre o espaço entre os dois e vai fazer contrair o músculo. Ora, era precisamente este mecanismo que falhava nesta doente. Daí a fraqueza e a fadiga.
(Os meus jovens internos, se algum dia me lerem, vão achar estranho e talvez épico o que se passou em seguida. Hoje entubavam a doente e assistiam a respiração mecanicamente, talvez respirassem então tão profundamente como ela porque o pior já tinha passado. “Mudavam-lhe o plasma”, aquela parte do sangue que transporta a peçonha desta doença ou, se estivessem mas preguiçosos e dispostos a complicar-me a previsão orçamental, davam doses apropriadamente grandes e obscenamente caras de imunoglobulina, que em vez de extrair o tal veneno apenas o inutiliza).
Mas voltando ao tempo deste episódio dois Investigadores, Drachman e Engel tinham meses antes, depois de estudarem modelos que utilizavam um veneno de uma espécie de cobra, descoberto o mecanismo da doença. Assim era que, as defesas do doente, que o deviam proteger de infeções, desenvolvimento de tumores e outras maleitas, viravam-se por razões obscuras contra ele próprio, eliminando os receptores que era o sitio onde atuava a tal substância que fazia transmissão nervo-músculo. Tal como uma chave entra na fechadura compatível.
Mas os receptores, as tais fechaduras, demoravam muito tempo a ser substituídas. Assim, e naquela altura, tinha de se recorrer a algo que aumentasse o número de chaves, a tal substância que o nervo liberta para produzir contração muscular (vamos chamar-lhe Ach), e esperar que o número de fechaduras existentes fosse o suficiente para obter resposta.
A incipiente Farmácia do hospital não tinha os produtos adequados. Mas por sorte (lembram-se do Napoleão?) uma farmácia por perto tinha uma embalagem de Prostigmina (que também servia para tratar coisas mais prosaicas como a atonia intestinal) que é um produto que impede que a tal Ach, as chaves, sejam destruídas pelas enzimas normalmente presentes aumentando assim a sua concentração onde é necessária.
Não vou contar da ansiedade e angustia de encontrar a dose certa. Ao fim de meia hora começou a melhorar e passada uma hora a resposta era indubitavelmente positiva. As pálpebras subiram, os olhos voltaram ao seu lugar normal e simétricos, a voz era mais cheia, quase tanto como a minha satisfação. A partir daí já conseguia engolir e seria apenas necessário o equilíbrio da dose pois um excesso podia provocar também fraqueza: combater os efeitos colaterais por vezes desagradáveis, repetir a dose a cada 4 ou 6 horas e esperar que uma medicação oral e com efeitos mais prolongados chegasse do Porto.
Durante todo este tempo não me lembrei do meu pai. Toda a atenção estava concentrada na doente e as palavras eram dirigidas à eficiente enfermeira chefe. Quando dei por ele estava sentado imóvel e não me admiraria que rezasse.
Quando estávamos para partir deu-me um breve beijo na testa e disse apenas 2 ou 3 palavras:
-“Foi um diagnóstico rápido”
Não era preciso mais. Eu tinha conseguido o respeito do meu pai e finalmente o direito a ser chamado o Dr. Luís. O meu pai tinha-se reconciliado com as minhas escolhas e percebido que não seriam insuperáveis as minhas roturas com a tradição. A Neurologia não tinha sido maltratada. E sobretudo salvamos uma vida, que eu segui até deixar de ver doentes mais de 30 anos depois.
Saímos no silencio em que sempre andávamos. Mas desde aí as palavras eram realmente supérfluas...
Era véspera de Natal, a família e a velha casa de muitas gerações esperava-nos, como esperavam há anos.
Continua...
CUMPLICIDADE E GRATIDÃO
Era numa época em que o lirismo dos Beatles seduzia já menos que o viço desenfreado dos Rolling Stones. Mas a maior parte das horas de envolvimento com a música passava-as a ouvir e a tentar decifrar as letras do Dylan. Que se me iam revelando pouco a pouco, em significados cada vez mais sentidos, sociais e brilhantes, escondidos atrás da sua voz roufenha e da cultura censurada em que eu vivia. Que me fazia ler, com avidez mas secretamente, os “subterrâneos da liberdade” e “ da vida e da morte dos bichos” que um livreiro, já esquecido nos dias de hoje, me fazia chegar a preço de custo e embrulhados em papel de mercearia.
Ao mesmo tempo tinha acabado um curso de medicina. E, muito inconvenientemente e a despropósito, resolvi que iria ser neurocirurgião.
Ora um aprendiz de qualquer especialidade cirúrgica é um híbrido de entusiasmo, agressividade com a mais despudorada submissão.
Depois do tirocínio, vivido durante alguns meses, chegou o grande dia em que passaria de um espectador passivo do Surgical Theater ( desculpem mas neste contexto a denominação inglesa parece-me mais apropriada) ao importante papel de segundo ajudante, logo a seguir à instrumentista, mas suficientemente afastado do Chefe para não lhe causar qualquer embaraço e sobretudo a distancia adequada do doente para que este ficasse a coberto de qualquer gesto ou atitude mais desconforme.
Mas antes de entrar em cena há todo um ritual que pouco teria mudado nessa época, desde o tempo em que Pasteur (e outros ou et al) descobriu a importância dos germes. Começava por retirar a roupa, vestir umas calças verdes e uma indescritível túnica que se enfiava pela cabeça.
Depois passava-se à primeira lavagem. Com escova rija e sabão esfregávamos energicamente até aos cotovelos com especial atenção às unhas (cortadíssimas). Várias passagens depois vinha a desinfecção da pele que ainda sobrava das manobras anteriores. Depois a touca. Que devido a tamanho e espessura dos meus cabelos, que hoje não passam de uma imagem raquítica e distante, tinha de ser uma de enfermeira (para as feministas recordo que na altura não havia neurocirurgiãs). Depois a máscara. Nova desinfecção que fazia a pele arder no seu último protesto.
A seguir chegava um dos momentos tão longamente esperados. Vestia-se a bata esterilizada com a “enfermeira do piso” a apertar nós firmes nas fitas que a fechavam atrás. Penso que nenhum de nós terá deixado de se ruborizar nessa situação. Orgulho e sensação de poder tão efémero em duração como perdurável na memória.
Finalmente vinham as luvas. Sete e meio que as mãos eram elegantes e esguias.
Bem... o problema foi apenas detectado nessa altura. No meio de todo o ritual tinha-me esquecido de um dos primeiros passos. E os sapatos brilhantes de um castanho cada vez mais avermelhado à medida que o sangue me afluía ao rosto eram uma exuberante acusação. Tinha-me esquecido de os cobrir com a tradicional bota de pano.
Os meus olhos caíram suplicantes e mudos na enfermeira auxiliar.
M. J. se chamava. Nome de outras personagens que haveriam de cruzar várias vezes a minha vida como talvez um dia, e se se proporcionar, irei contar.
Anos e anos se passaram. Eu percebi que era mais fácil e mais adequado dedicar-me a pensar que a cortar e tornei-me um clínico e, tendo cumprido todos os passos, estou agora em fim de carreira. Ela como era fácil intuir por aquela atitude rapidamente chegou a Enfermeira chefe. Mas desde esse dia não houve uma única vez que nos encontrássemos que não nos uníssemos num franco, inocente e desbragado abraço, com a cabeça dela a chegar-me a meio do peito. À altura do coração...
Cumplicidade e gratidão...


“Aos quarenta e quatro anos continuo a sonhar com uma espécie de ternura essencial.»
(Roman Gary, A Promessa)
Teria 12 ou 13 anos porque frequentava ainda o Liceu Francês e vinha a casa de comboio nas férias. A minha mãe tinha-me dado este livro, junto com algumas insinuações e recomendações mais ou menos descaradas, sugestionando que aquela relação de mãe com o filho, tema principal do enredo, seria algo de exemplar. Ainda não percebi se anteciparia uma projeção de futuro –o desejo que o livro me influenciasse positivamente- ou se referiria ao então atual, não querendo que a leitura me transvertesse do bom caminho que seguia. Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo. Esta dualidade, da lógica incontornável e simultânea como a do sim e do não, um caminho ou o seu contrário, defendidos com a mesma convicção, encontrei-a na heroína o livro. Como já a tinha suspeitado na minha mãe. E como vim a encontrar em algumas das mulheres de quem mais gostei depois ( aqui que se lixem os psicanalistas mais ortodoxos).
Em que o sim será, por exemplo, uma tentativa manifesta de condução. E o não servirá para, se as coisas não correrem como desejado, não perder por completo o controlo da situação salvando a face e podendo sempre recomeçar na base inicial.
E revi-me na personagem mais jovem da história. Naquela paixão envolvente e bela mas que roça a dependência sem crítica nem limites. Que nos transmite uma noção de ternura e segurança mas que exige tudo em troca. O nosso pensamento, a nossa emoção mas acima de tudo uma grande parte da nossa conexão com o mundo. Um filtro do que se entranha e do que sai de nós. Exemplos no romance, e já agora na vida de algumas pessoas: o papel do pai, menorizado pela mãe, como ausente ou pouco importante na relação entre os dois. Mas Roman Gary ainda o caricaturou mais, descrevendo-o como fugidio às suas responsabilidades, um débil que morreu às portas da câmara de gás com um ataque de pânico.
“Tu terás que ser melhor que o teu pai, não porque queres, mas porque eu mereço”. Esta frase não é do autor mas poderia ter sido escrita em qualquer altura do livro. E nela pode encerrar-se toda uma mitologia que vem dos escritos gregos e que foi reabilitada em finais do século XIX. Uma mitologia e um equívoco ao considerar indispensável apenas a parte filial da relação. E a luta constante para alcançar espectativas que não são as nossas. Mas também aquela mãe impar que se sacrificava para além do concebível. O que só servia para fechar ainda mais o círculo de chantagem com aquilo que de mais puro existia nos dois corações e depois, a descida ao precipício da culpabilidade.
Não entendi, na altura da primeira e única leitura, os sintomas da luta do escritor contra este estado de coisas. A sua revolta parecia-me de uma ingratidão inqualificável. As suas fugas ocasionais de uma insensibilidade insuportável.
Dada a minha relação com os livros ( que qualquer dia explicarei se vier a propósito) quando quero reler uma obra tenho de a adquirir de novo.
Tal não aconteceu com “ A promessa”. A única leitura que fiz ficou-me impressa nos circuitos da memória e da emoção. À medida que eu ia crescendo e ganhando autonomia, as sensações que evocavam estas memórias passaram por vários estadios. Depois de ser “o livro da minha vida” passou a um teatro vivo do que não queria ser. Depois odiei-o visceralmente. Só depois o entendi na sua genialidade e foi apenas quando compreendi, por fora digamos assim, a parte importante da vida que o Autor aborda.
Mas uma dedicada e controladora mãe como a de Roman não fica por aqui. Pretende, talvez muito licitamente, prolongar a sua presença para além da ausência física.
O ter escrito e datado uma série de cartas para que o filho não se apercebesse da sua morte é disso um exemplo e uma das partes mais comoventes da literatura atual que tive oportunidade de ler.
“Aos quarenta e quatro anos continuo a sonhar com uma espécie de ternura essencial.»
escrevia ele enquanto observava os pássaros ao pé do mar...
Numa associação talvez não muito evidente de ideias lembrei-me subitamente de um texto de Coimbra de Matos, escrito num obscuro jornal médico da década de 70 ou 80 em que fala do fim da psicanálise de um neurótico que aparentemente já se tinha apercebido de todos os mecanismos que condicionavam a sua doença.
- “ Mas de vez em quando ainda sinto os dedos dela acariciando-me a nuca...
- “Isso são os dedos da morte” Vociferou o terapeuta.
Talvez sejam. Mas mesmo aos 68 não há doçura que se lhes compare...

terça-feira, maio 10, 2016

Em quantos dias se cria o mundo ?
Foi numa década de descobertas. A terminar um estágio em Londres, as notícias do País chegavam-me distantes e só a custo conseguiam ultrapassar a névoa emocional em que a aprendizagem da Neurologia me entorpecia.
A inevitável entrada na realidade aconteceu só depois da aterragem do regresso, e terá sido decerto bem menos suave.
As barricadas e os controlos de identificação prolongaram ao infinito a viagem do aeroporto até Coimbra. Mesmo assim insuficiente para tentar interiorizar o que me esperava e o que de mim seria exigido.
Com a ponte de Santa Clara já à vista, a última barricada. Por um instante os olhos procuraram o refúgio intemporal da torre. Percorreram depois a multidão, algo indistinta à luz de uma madrugada que se adivinhava quente como foram todas as de fins de julho de 75. Que ocupava a estrada, num apelo à nova realidade. Lá estavam de facto alguns colegas e amigos de outras ( ou seria a mesma?) luta(s). Do luto académico, da greve aos exames. Até dos piquetes de greve. O problema é que também lá estavam os outros em feliz e inimaginável confraternização. Os medrosos e os oportunistas. Os profissionais e os teóricos. Os sonhadores e os medíocres. Os da União Nacional e os anarquistas...
Percebi como era fácil, para muitos, escolher o lado da vitória consumada mesmo que à revelia do que até então defendiam. O prazer de uma liberdade ansiada diluiasse-me numa aprendizagem custosa da natureza humana.
E foi trauteando mentalmente
“Oh my name it is nothin'
My age it means less
The country I come from ...
(sempre Dylan, tão presente como um evangelho) que me dei ao prazer sádico e oportunista de lhe modificar a letra do último verso :
“with God in our side we”ll start the next war” .
Com esta falta de confiança nos homens e esta canção amarga na garganta subi a colina acostumada de acesso a uma casa e a uma cidade que já quase desconhecia.
Foi pouco depois que O conheci pessoalmente. ( E se uso aqui o O maiúsculo tal não se deve a qualquer endeusamento mas sim a uma singela homenagem. Era assim que nos seus livros se referia ao próprio Pai – o biológico, simples, sensato, emergência natural, telúrica diria ele, da própria aldeia de penedos, urzes e torgas - e não outros pais mais colectivos e divinos em que não acreditava).
Essa parte de uma convivência que nunca poderia ser suficiente, as histórias e as palavras, mas sobretudo a sua influencia em mim contarei com a fidelidade que aprendi, se tal se proporcionar e se a tanto me ajudar a memória e a emoção.
Começamos apenas com 3 coisas em comum; a medicina, um amigo (homónimo no nome e conterrâneo no nascimento) e claro a caça...
As SO2
Escrevia, num dos seus livros, que gostava de caçar com quem dele soubesse apenas que era “ rijo de perna e esquerdino a atirar”. Foi pois com corrosiva ironia que viu os seus acompanhadores naquela distante manhã, no meio de um Alentejo mais quente e mobilizado do que habitual, num terreno que era ainda cinegeticamente livre- a res nulla latina- onde a caça não tinha dono e se circulava livremente ao sabor da resistência e do voo das perdizes numa irrepetível sensação de liberdade, foi nessa manhã dizia eu, que ele notou que tínhamos umas espingardas novas. E o seu nariz adunco parecia preceder e orientar o olhar com que as examinou ao pormenor. Não se pareceu deter na elegância da forma, estilizada como só os italianos conseguem. Nem mesmo nas gravuras perfeitas, com imagens de aves desenhadas ao pormenor de penas. Nem na madeira de nogueira com as suas ramificações e nós que são o mais próximo que o mundo vegetal consegue chegar-se à arte.
Era de facto uma arma acima das nossas posses. Que só lográmos adquirir numa época em que tínhamos um 1º ministro protegido por uma muralha de aço de opereta e que, por temerosas razões, eram vendidas ao desbarato.
E aqueles laivos de pronuncia transmontana, que depois de tanto mundo remanesciam ainda naquela voz, deram relevante impacto a uma critica mais destruidora do que as SO2:
- “Mas digam-me lá, essas armas tocam campainhas quando acertam nas perdizes?”
Como muitas outras vezes não tivemos resposta na ponta da língua. Tentei pelo menos demonstrar durante esse dia que, se não era esquerdino a atirar, pelo menos tinha mais perna que língua e mais pontaria do que alguns companheiros desejariam. Mas de facto não ouvi campainhas...
Na viagem de regresso, que demorava horas, vim propositadamente a tecer louvaminhas à serra dos Milhafres, ao uivar dos lobos e a Aquilino perante um silêncio que interpretei como aquiescente. Foi já com as ruinas do castelo de Penela à vista que rompeu o longo, e por certo menos brilhante que entusiasmado monólogo.
- Pois, terás razão em algumas cousas, mas já notaste que ele põe o pastor a falar da mesma maneira que o bispo?
Novamente não tive resposta à altura. Nem sequer me lembrei do Malhadinhas e da sua história de violação e morte. Mas a inquietação lá ficou, como uma cicatriz antiga, que se fazia sentir cada vez que me apetecia voltar a ler Aquilino...
Algumas outras caçadas tivemos nos anos que se seguiram de progressivo despovoamento cinegético e desencanto.
Visitei-o no seu leito final num hospital que fica aqui em frente mas nunca mais foi o mesmo. Os medicamentos e os efeitos remotos da doença que o consumia retiravam-no por vezes do mundo da realidade.
- “O Sr. Dr. lembra-se de mim?”
Perguntei sem esperança. Os olhos abriram-se-lhe com o mesmo brilho que nos trespassava o corpo e nos entendia as emoções. Como certas palavras dos seus livros.
- “Lembro. Do teu grupo de caça eras o menos mau”.
Mas as últimas palavras que dele ouvi foram um pedido que só um caçador entenderá na forma e sobretudo na essência. Que quando atirasse a uma perdiz de “bico a baixo” -as que voam do cimo da serra com asas semicerradas a uma velocidade estonteante e com um zumbido quase balístico - que me lembrasse Dele. Como se alguma vez o tivesse esquecido! Os seus olhos quase se tornaram humanos e vi que se tinha refugiado nas recordações que amava. Saí lentamente sem quebrar o encanto e com as lágrimas correndo.
Mais tarde, e se vier a propósito, contarei como me desenvencilhei deste pedido. Afinal era o “menos mau” do meu grupo!