sexta-feira, maio 13, 2016



O Dr. Mário
(parte 1)
Desde o “velho Dr. Cunha”, contemporâneo de Júlio Dinis que procurava nessa altura alívio para a sua tuberculose no clima marítimo de Ovar escrevendo as “Pupilas do Senhor Reitor” e também do Eça, que se refere aos seus serões musicais, bem aproveitados pelo seu personagem Artur Corvelo para fins mais carnais, desde o tempo do “velho Dr. Cunha” dizia eu, todos os seus descendentes em linha direta, médicos como ele, ficaram conhecidos apenas pelo primeiro nome. O Dr. Salviano. O Dr. Mário e o Dr. Rui. E eu claro, que ainda tive o privilégio de ser identificado como o Dr. Luís. Infelizmente não consegui transmitir esse invejável estatuto aos que poderiam vir a ser o Dr. Gil e Dr.ª Carlota por razões que contarei em seguida. São 5 ou 6 gerações de médicos numa transmissão comprovadamente autossómica dominante de altíssima penetração.
Não foi fácil, no início, o envolvimento e cumplicidade que vim, mais tarde, a desenvolver com o meu pai. Os primeiros anos foram influenciados pela forte e quase exclusiva ligação à minha mãe como já atrás referi.
O meu pai provinha de uma família com nítida ascendência nórdica, loira e de olhos verdes, de Vikings que colonizaram o norte da Ria, onde não se gostava de mostrar os sentimentos. Uma eventual relação seria, estou certo, trucidada pela truculência meridional da minha mãe. E também, embora dito com a melhor das intenções, pelo endeusamento que os seus doentes me comunicavam amiúde na rua, já que, como filho, preferiria talvez um pai e não um santo ou um anjo como a ele frequentemente se referiam.
Na maior parte do tempo da minha infância parecia que nos ignorávamos educada e deliberadamente.
E se as coisas melhoraram ligeiramente, quando por impulso, numa decisão de último instante e ainda com 16 anos me matriculei em medicina, a “entente cordial” ter-se-á mantido apenas até à escolha da especialidade.
Durante 4 talvez 5 gerações tínhamos sido médicos de clínica geral, com enorme dedicação ao doente, partilhando com eles a vida, a doença, os momentos de glória, o nascimento e a morte. Durante gerações houve famílias que não conheceram outros médicos nem outros apelidos. Eu iria quebrar a corrente, um elo definitivamente solto numa história incomum, construída com enorme dedicação. O fórceps iria ficar na sua caixa estilizada de madeira nobre. O consultório mais que centenário ficaria deserto. (Ainda hoje é visitável e permanece conservado em memória a esse legado que eu tão levianamente, na sua opinião, teria desprezado.)
Mais grave ainda: a minha escolha tinha recaído na Neurologia. Um teatro de pedantismo alimentado pelas notícias das “leçons du mardi” do Charcot que guardadas pelo meu bisavô e encadernadas em couro com letras douradas, a mim vieram parar mais de um século depois. Talvez como um aceno ao mesmo tempo conivente e irónico ao seu relapso descendente.
Que opinião poderia ter um clínico de província desses presumidos, que utilizavam um exame neurológico que mais parecia um ato de pantomina e que tinham um prazer quase orgástico em diagnósticos elaborados e brilhantes que ninguém em vida podia confirmar?
Que serviam apenas para intermináveis discussões, entre iluminados, já que não conseguiam tratar ninguém. E quando porventura acertavam as consequências seriam mais comparáveis a um polícia sinaleiro que a um médico que deveria ter o tratamento e não o diagnóstico como prioridade final. Este passa, a natureza vai cura-lo. Este vira à esquerda, vai ficar miseravelmente diminuído, mas sobrevive. Este termina aqui o seu percurso.
Um Homem sorri à morte – com meia cara, (narrativa autobiográfica de José Rodrigues Miguéis) foi publicado pela primeira vez em 1959 e ainda estava muito fresco nas memórias. Assim como a transcrição que nele faz de um longo monólogo decorrido durante a visita à enfermaria onde o Miguéis jazia em estado grave. O Professor, um famoso neurologista americano, Houston Merritt, perto do seu leito explica á multidão de assistentes embevecidos as razões porque aquele doente iria morrer passadas 3 semanas. O que obviamente não aconteceu.
Pedantismo, exibicionismo, imodéstia e inutilidade eram os componentes da imagem que meu pai antevia para mim. Ou seja o inverso de características familiares que julgava já geneticamente transmissíveis.
Mas decorria a parte final da década de 70 e a Neurologia era uma especialidade muito atenta e ávida de todas as evoluções de outras ciências mesmo básicas que cresciam em seu redor. Começou nessa época a aproveitar-se da bioquímica, da genética, da imagiologia... De tal forma que no tempo presente é preciso recordar amiúde aos mais jovens formandos que tratamos doentes e não bio-marcadores ou RM!
Escoava-se ainda a ultima metade da década de 70. O meu cabelo era comprido, usava uns óculos de intelectual que talvez não precisasse inteiramente e imitava descaradamente os meus mestres ingleses- na postura, na roupa e na maneira aparentemente dócil de falar- quando voei até Ovar para umas férias de Natal.
Ora um dos sítios preferidos do meu pai, quando não estava na casa dos doentes ou no consultório, era o Hospital. Convidou-me para aí o acompanhar e poderia, talvez, dar a minha opinião sobre alguns doentes que lá se encontravam internados.
O primeiro caso era uma Acidente Vascular Cerebral. Banal, frequente e evidente como diagnóstico. Podia ter ficado por aí. Mas a tal vaidade exibicionista ainda existia em mim e não estou certo que alguma vez tenha desaparecido. Vi as suas pupilas desiguais, uma ligeiríssima queda da pálpebra á esquerda como se estivesse com sono só desse lado. Uma falta de sensibilidade na face e do hemicorpo do outro lado como num “patchwork”. Descoordenação na mão novamente á esquerda.
E da miríade complexa das centenas de artérias que nos irrigam o cérebro escolhi uma, pequena e escondida por trás de rochedos e nuca.
- “O doente tem uma obstrução da PICA. (posterior inferior cerebelar artery).
- “E como se trata” perguntou o meu pai , aqueles olhos verdes com um lampejo de esperança.
-
- “Da mesma maneira que os outros AVC, com aspirina” respondi antecipando já o desvio daqueles olhos para um refúgio de desilusão e de certeza.
Conta-se que Napoleão (o ídolo insubstituível dos bipolares antes do aparecimento do Marcelo) quando entrevistava um candidato á nomeação para general passava superficialmente na revisão dos feitos e obras e terminava com uma pergunta definitiva:
- Sim, mas é um homem de sorte ?
Ora se houvesse um Napoleão na Neurologia ( eu conheci um, do Porto, mas a estória ficará para outra ocasião se achar que vale a pena contar) na resposta à sacramental pergunta eu teria que responder com um veemente sim, como veremos em seguida.
E na nossa visita ao hospital passamos á doente seguinte. Quando a vi o meu coração ainda saudável e forte ...
Continua

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