quinta-feira, maio 19, 2016



UMA CAÇADA AOS PATOS


O sol não emergira ainda, mal se adivinhando, por uma claridade difusa e fria, o seu futuro trajeto. Do outro lado, num escuro impenetrável, o ruído inconfundível da marcha dos cavalos. Que só a curta distancia se materializam com o seu volume, o cheiro a suor e a couro das selas e dos arreios.
O esforço, já difícil, pé no limite do estribo e o impulso, seguido daquela sensação de insegurança e excitação com o corpo moldando-se quase atavicamente à sela e ao movimento.
Os primeiros passos, ainda em terra firme, em simbiose, guiados um pelo instinto outro pela confiança. Pouco depois um espelho de água que as patas ferradas partem repetidamente, acabando com cintilação reflexa das estrelas e aumentado a escuridade. E a modificação do som dos passos: o chapinhar esforçado dos cascos vencendo a lama, a água e a distancia. Os juncos altos que vão surgindo em ilhas cada vez mais cerradas são, enquanto possível, contornados laboriosamente. O Hugo, à nossa frente, vai-as evitando e liderando o pequeno grupo. Agora as ilhas de junco agregam-se num imenso e negro plasma que vamos a custo atravessando e que quase nos arranca da sela.
Pouco a pouco o pântano vai acordando. Primeiro num rápido e impreciso bater de asas de algo que se levanta para logo se esconder. Depois um canto tímido, quase envergonhado, vai ganhando vulto e companhia até se completar numa sinfonia imperfeita que nos envolve num abraço de vida.
Adivinha-se agora o nascer do sol por uma cor mais vermelha e por um arrepio de frio que atravessa o ar.
O cavalo mantem-se no seu ritmo irregular, quase dançando ao som da tal sinfonia imperfeita. Fecho os olhos tentando perceber se é sonho ou talvez tentando não acordar nem mesmo entender.
A opressão no peito, agora benigna, apaga todas as outras de um passado muito próximo.
O ganso! O cantar do ganso...atinge-me com seu tom roufenho e algo ridículo e suaviza todas as palavras, todas as dúvidas e todas as questões acumuladas nos últimos seis meses.

 E enquanto o primeiro raio de sol cintila numa lágrima feliz que adivinhou no canto do olho....compreendo  que, com ou sem sonho, com ou sem dúvidas, medos ou perguntas, o coração do pântano bate pelo meu, o seus sons ritmizam-se ao sabor da paz, da tal sinfonia que de tão melódica se fez imperfeita.
Atravessamos agora uma vasta extensão de água, sem limites, sem obstáculos, sem luzes nem sombras.
E escuta-se o primeiro tiro.

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