sexta-feira, maio 13, 2016

CUMPLICIDADE E GRATIDÃO
Era numa época em que o lirismo dos Beatles seduzia já menos que o viço desenfreado dos Rolling Stones. Mas a maior parte das horas de envolvimento com a música passava-as a ouvir e a tentar decifrar as letras do Dylan. Que se me iam revelando pouco a pouco, em significados cada vez mais sentidos, sociais e brilhantes, escondidos atrás da sua voz roufenha e da cultura censurada em que eu vivia. Que me fazia ler, com avidez mas secretamente, os “subterrâneos da liberdade” e “ da vida e da morte dos bichos” que um livreiro, já esquecido nos dias de hoje, me fazia chegar a preço de custo e embrulhados em papel de mercearia.
Ao mesmo tempo tinha acabado um curso de medicina. E, muito inconvenientemente e a despropósito, resolvi que iria ser neurocirurgião.
Ora um aprendiz de qualquer especialidade cirúrgica é um híbrido de entusiasmo, agressividade com a mais despudorada submissão.
Depois do tirocínio, vivido durante alguns meses, chegou o grande dia em que passaria de um espectador passivo do Surgical Theater ( desculpem mas neste contexto a denominação inglesa parece-me mais apropriada) ao importante papel de segundo ajudante, logo a seguir à instrumentista, mas suficientemente afastado do Chefe para não lhe causar qualquer embaraço e sobretudo a distancia adequada do doente para que este ficasse a coberto de qualquer gesto ou atitude mais desconforme.
Mas antes de entrar em cena há todo um ritual que pouco teria mudado nessa época, desde o tempo em que Pasteur (e outros ou et al) descobriu a importância dos germes. Começava por retirar a roupa, vestir umas calças verdes e uma indescritível túnica que se enfiava pela cabeça.
Depois passava-se à primeira lavagem. Com escova rija e sabão esfregávamos energicamente até aos cotovelos com especial atenção às unhas (cortadíssimas). Várias passagens depois vinha a desinfecção da pele que ainda sobrava das manobras anteriores. Depois a touca. Que devido a tamanho e espessura dos meus cabelos, que hoje não passam de uma imagem raquítica e distante, tinha de ser uma de enfermeira (para as feministas recordo que na altura não havia neurocirurgiãs). Depois a máscara. Nova desinfecção que fazia a pele arder no seu último protesto.
A seguir chegava um dos momentos tão longamente esperados. Vestia-se a bata esterilizada com a “enfermeira do piso” a apertar nós firmes nas fitas que a fechavam atrás. Penso que nenhum de nós terá deixado de se ruborizar nessa situação. Orgulho e sensação de poder tão efémero em duração como perdurável na memória.
Finalmente vinham as luvas. Sete e meio que as mãos eram elegantes e esguias.
Bem... o problema foi apenas detectado nessa altura. No meio de todo o ritual tinha-me esquecido de um dos primeiros passos. E os sapatos brilhantes de um castanho cada vez mais avermelhado à medida que o sangue me afluía ao rosto eram uma exuberante acusação. Tinha-me esquecido de os cobrir com a tradicional bota de pano.
Os meus olhos caíram suplicantes e mudos na enfermeira auxiliar.
M. J. se chamava. Nome de outras personagens que haveriam de cruzar várias vezes a minha vida como talvez um dia, e se se proporcionar, irei contar.
Anos e anos se passaram. Eu percebi que era mais fácil e mais adequado dedicar-me a pensar que a cortar e tornei-me um clínico e, tendo cumprido todos os passos, estou agora em fim de carreira. Ela como era fácil intuir por aquela atitude rapidamente chegou a Enfermeira chefe. Mas desde esse dia não houve uma única vez que nos encontrássemos que não nos uníssemos num franco, inocente e desbragado abraço, com a cabeça dela a chegar-me a meio do peito. À altura do coração...
Cumplicidade e gratidão...

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