quarta-feira, junho 22, 2011

Elos

A vida é constituída por uma serie de elos contínuos que até que surja alguma rotura mais definitiva se vão juntando numa cadeia nem sempre lógica. Um desses elos começou numa data imprecisa de Fevereiro. Na altura em que G….. me convidou para um mate. Diz-se, nesta parte da América do Sul, que as amizades não se fazem bebendo leite. Este seria, dizem com humor ferino que os caracteriza, mais uma questão de amor. Não,  as amizades, acreditam com convicção, começam com o vinho ou equivalentes locais mais fortes e destilados. E claro, acima de tudo com o “mate”. Essa erva, outrora espontânea, cultiva-se agora em enormes quantidades e a infusão a que da origem toma vários nomes. Quente no Rio Grande do Sul onde toma o nome de chimarrão. O mesmo exactamente que atravessando a fronteira para a Argentina de transfigura no mate que falávamos. Tal como no Uruguai e Paraguai. Neste ultimo pais, e no tempo do calor, blocos de gelo substituem convenientemente água quente .
Mas muito mais importante é o ritual que origina. Exige uma serie de instrumentos tradicionais em que os globalizantes plásticos são mal aceites. Recipiente de vidro para guardar a erva. Depois a ponta de um chifre trabalhado para, a maneira de uma pá, verter a quantidade precisa de erva para o recipiente: uma arredondada abóbora oca  que ergonomicamente se ajusta a qualquer mão. Debruada a metal, frequentemente prata, não porque seja absolutamente necessário. Mas todas as liturgias a usam. Depois, e como parte última e essencial, a 'bombilla'. Um tubo do mesmo metal, com as curvas que a pratica foi ensinado, trabalhada com os enfeites ditados pela imaginação ou bolsa do gaúcho.
Mas o verdadeiro ritual só começa mesmo  quando a agua com  a temperatura certa se vai juntando, com a técnica e experiencia adequada. O que convida é o primeiro. Prova, dá o seu parecer e volta a 'cevar' para o companheiro seguinte. A cabaça passa assim de mão em mão e a bombilha de boca em boca. Uma partilha sem reservas que rapidamente se transfere para as palavras, sentimentos e recordações. E estas começaram devagar entrecortadas pelos intervalos proporcionados pelo cerimonial do mate e pelas nossas próprias memórias que íamos comparando
G…… era um filho de gente do campo e de trabalho. Dominavam de maneira absoluta e feudal as centenas de milhares de hectares e umas centenas de encarregados e peões sobre os quais o seu direito era quase divino e incontestado.
Berço de ouro no meio do deserto verde das terras… perto do mar e das areias brancas…cavalo desde que deu os primeiro passos, arma de defesa aos 5 anos que a terra não era fácil…bicicleta e barco á vela numa ria de horizontes que pareciam amplos…mas que eram menores que um dos lagos da sua “estancia”…automóvel aos 10 anos, avião privado aos 18, estudos em Londres num curso de gestão agrícola…faculdade de medicina em Coimbra… azares da vida, do jogo e da finança que o atiraram para uma vida difícil á beira da ruína…os progressivos exames das carreiras…a coragem para combater, para recomeçar, os limites da legalidade e a chegada ao desafogo quase ostensivo  de antigamente…a ascensão ao topo das carreiras. Vareiro e Correntino assim se encontraram “mateando” pachorrentamente enquanto aos pés, rápidas mas tranquilas as águas contornavam a “vuelta del Pirata”antes de novo se lançarem, algo metaforicamente, na imensidão do rio Paraná.
Quando tudo se compôs, quando a sua vida entrou de novo na rotina algo se esvaziou como numa promessa cumprida…como numa viagem terminada…como alguém que olha com estranheza, agora com tempo, aquilo que o rodeia há anos mas de que não se tinha apercebido. Mas um homem não deprime, não chora. Sente mas resiste. Sofre mas segue. Não lhe apetece mas vai. O corpo contudo é mais frágil e rebenta em erupções na pele que tanto resistiu às intempéries da vida exterior.
E assim se cruzam, de maneira fortuita e improvável  a doença psicossomática e o médico. E o “mate” continuou a correr, agora entre a explicação dos mecanismos e a sugestão terapêutica.
Quatro meses se passaram sem qualquer outro contacto. Que a amizade e confiança resistem  tanto ao tempo como aos oceanos e aos continentes.
Há dias repete-se o ritual. O mate, a paisagem. Mas o simbolismo da pele crua e lisa do cinto gaúcho, com fivela de prata trabalhada e com as iniciais, que me ofereceu, foi um daqueles momentos de ternura, que alguns homens, que já tenham discutido mulheres, se permitem.
Como os que lerão esta estória G…… não gosta de caça. Por isso o convite para caçar num campo virgem de 3 gerações surpreende-me e emociona-me.
Havia lá um encarregado, gaúcho bravo de espetar 3 homens que acrescenta mais um elo á cadeia. E assim começará a estória do señor Aranda.