terça-feira, maio 10, 2016

O último dia da criação do mundo
Os primeiros dias de caça decorreram em Bloemfontein bem no centro da África do Sul há 2 ou 3 anos atrás. Cheguei no meio de uma tempestade de areia que sacudia o pequeno avião e tirava quase por completo a visibilidade. Era uma região de agricultura de sequeiro, como diriam os meus compadres alentejanos, em que rolas e pombos (red eye pigeon) causavam um estrago considerável. A nossa presença foi assim motivo de alguma satisfação para os proprietários mas mais ainda para os miúdos das aldeias vizinhas que no fim efetuaram o cobro mais sistemático e inteligente que já vi em alguns continentes que visitei. Nenhuma fonte de proteína se pode desperdiçar naquelas paragens. E aqueles rostos felizes no regresso a casa contagiaram-me.
Passados mais alguns dias fizemos um voo curto para Durban. E então vi as tais verdes colinas de África. Depois de uma divertida e pouco habitual caçada com negaça aos gansos, algo enganadores na sua aparente lentidão, fomos então às perdizes e aqui começa a parte da história que lhes queria contar. Nas tais colinas. Eu e um americano, 2 fabulosos e bem tratados “pointers” e 2 guias. O Leonard escolheu a cumeeira e eu a meia encosta. Começamos a caminhar naquele terreno dobrado e de vegetação verde, ora como um tapete, ora mais alta e densa ao ponto de nos dificultar a marcha. Os “pointers” percorrendo todo o terreno à nossa frente naquele galope controlado que lhes é característico. A paisagem, os sons e os cheiros eram avassaladores e quase esqueci a razão porque ali me encontrava.
Súbita e simultaneamente os cães paralisam-se em posições inimagináveis. Como estavam à frente do meu parceiro e eu cerca de 200 metros abaixo, parei para apreciar o lance. A perdiz não aguentou muito tempo a paragem. Arrancou num arrepio de som e de reverberação de asas amplificado pelos declives de terreno e o eco das colinas. Ouço dois tiros precipitados do conterrâneo do Hemingway que apenas provocaram uma curva ampla da perdiz que agora vinha descendo nitidamente na minha direção, ganhando velocidade. Preparo-me sem grande esperança para um “coup de roi” na vertical, tiro difícil como se percebe. Mas seguindo a curvatura do terreno faz mais uma manobra rápida. A trajetória passar-me-ia agora a cerca de 30 metros. Tentei fazer tudo certo como me tinha ensinado o meu amigo e campeão Paulo Cleto. O tiro ao voo é geometria pura e a posição do corpo permite assumi-la. Os pés bem virados para baixo do declive de maneira a poder rodar o tronco e a SO2 à velocidade desejada. O joelho esquerdo semi-flectido para entrar na linha descendente da ave e que, ao rodar, o ombro direito me descaísse convenientemente. Encarei a perdiz, medi-lhe a velocidade, acompanhei-a durante um ou dois batimentos cardíacos. Rodei ainda mais depressa. Esta era mesmo de “bico a baixo” e via-lhe já todos os pormenores da cor e da forma e adivinhava a potência dos seus músculos. Adiantei a arma 1 ou 2 metros à frente da perdiz e aumentei ainda mais a velocidade de rotação. (Não se pode apontar ao alvo nesta caça. O tiro tem de ser disparado para a frente para o sítio onde a ave estará quando o chumbo lá chegar). E disparei..
Em plena terra Zulu disseram-me que os feitiços e magia são frequentes, mas eu não acredito.
Apreciei ainda aquele flash de suspensão e de surpresa...um intervalo de paragem do relógio em que o tempo é só nosso. E a perdiz começou a queda para o solo enquanto algumas penas iam marcando o seu caminho no espaço. Lembram-se do livro de Nicholson Baker, La Fermata, em que ele era capaz, desde a infância, de parar o tempo dos outros enquanto ele se movimenta a seu belo prazer ?(neste caso uma palavra bem adequada às atividades a que se dedicava). Pois bem ter-me-á acontecido o contrário. O meu tempo parou.
Vi os penedos de granito que pareciam querer prolongar a terra. O tom cinza e sacrificado do mato. Algumas estevas com o seu odor inconfundível. Um pequeno rio que corria inquieto lá em baixo. Algumas leiras de centeio. Um sino perdido na distancia e no tempo repicava com a alegria de um casamento com a natureza ou de um batizo de um renovo.E num bloco enorme de granito, quase confundindo-se com ele com as suas calças de cotim e velha camisa desbotada, arma em posição canhestra, o perfil algo recurvado e longilíneo , vi-o. E pela primeira vez sorria, com dentes sadios mas gastos de tanto remoer a vida e triturar as palavras que ele sabia fazer repercutir nas serranias e apanhar-nos inteiros na sensibilidade.
-Doctor Cunha...Doctor Cunha are you feeling OK ?
Perguntou-me o preocupado guia que reapareceu no meio do verde e das colinas trazendo-me na mão a perdiz e com os dois cães atrás.
-Never felt beter .
Ouvi-me a responder numa voz ainda remota.
- Shall we go on Sir ?
Como são educados os Boers...
- Indeed I already got what I was looking for.
Respondi alisando cada pena em desordem da perdiz e pendurando-a à cinta.
Descarreguei a SO2, coloquei-a como um colar à volta da nuca e desci da colina aos saltos como fazia há 40 anos atrás, nas poldras do vale do Côa ou na descida da Santa até Marialva.

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