sexta-feira, maio 13, 2016



O Dr. Luís
Era uma jovem de pouco mais de 20 anos com um cabelo de uma cor mais arruivada que loira, a pele muito branca salpicada com sardas de castanho claro mesclado com o vermelho rosado, que seria linda não fosse o desalinho geral em que se encontrava. Os olhos, a minha primeira preocupação quando observo um doente, mal se conseguiam adivinhar por baixo de umas pálpebras quase completamente descidas como duas persianas que permitem apenas o filtrar de uma ténue claridade.
(Convém aqui salientar que uma das características de muitas doenças neurológicas é a sua visibilidade. Pode um doente andar a passear a sua angina de peito por terreno plano: pode outro ainda ter um tumor do mais maligno no pulmão e passam por nós na rua e não nos apercebemos de qualquer mal, por mais que obstinadamente os analisemos. Mas a vitima de um AVC, de meio centímetro que seja, ou um doente com movimentos anormais com lesões ainda mais micrométricas, só visíveis a microscópio, serão detectáveis de um lado para o outro da rua enquanto esperamos a mudança do semáforo. Um olhar treinado pode mesmo fazer o diagnostico correto.)
Essa a razão porque já sabia de que doença sofria a jovem. As perguntas que lhe fiz (começou por ver a dobrar? tem dificuldade em engolir? Cansa-se facilmente?) foram apenas de ostentação retórica pois já sabia a resposta a cada uma delas, dada numa voz estranha como se todo o ar lhe passasse diretamente das cordas vocais para o nariz. O exame de fadiga muscular mostrou que os globos oculares não suportavam por muito tempo o olhar para cima, começando a descer cada um deles separadamente como que exaustos e desinteressados um do outro.
Ao pedir para contar até vinte a sua voz ia progressivamente enfraquecendo até que se tornava inaudível . O mesmo se passava na deglutição. Aos primeiros golos de água tudo parecia normal mas depois começava a engasgar-se e o líquido saia-lhe pelas narinas. O mesmo cansaço era demonstrável na parte superior dos membros. Mas, o mais preocupante, era a fraqueza do músculos respiratórios que prenunciavam um risco de vida para a doente que, a nada ser feito, morreria dentro de horas em asfixia em plena posse do seu estado de consciência. Tinha uma miastenia gravis (atualmente, e com o progresso da terapêutica, este adjetivo foi retirado do nome da doença) e estava em crise miasténica e isso transforma o mais pedante neurologista num médico.
(Todavia não são os neurologistas os presunçosos únicos da medicina. Tenho-os encontrado noutras especialidades e os que se dedicam à história da Medicina não serão os mais inocentes. Consideram eles que a primeira descrição da doença é bíblica e estará, se a soubermos procurar, no Livro dos Juízes. Sansão quando foi amarrado á coluna do templo estaria em crise miasténica e daí a sua incapacidade de reagir. No decurso da doença, o seu perfil temporal, é frequentemente flutuante com agravamentos e remissões às vezes espontâneas. No caso dele assim aconteceu. O resto da história, quando recuperou a sua força, é do conhecimento de todos. Apenas Salomé viu agravarem-se ainda mais os seus pecados já que, à traição, juntou um erro indigno sobre a causa da doença que nada teria a ver com os cabelos do Sansão que ela maliciosamente cortou.)
( E como gostam os homens de glosar com estas “certezas”, femininas, quando estas se revelam inadequadas.)
Mas a neurologia é uma especialidade generosa e aliciante que, mesmo não servindo para resolver o problema anterior, nos conduz, se soubermos o caminho, diretamente das queixas do doente até à localização da doença. Neste caso o problema estava na dificuldade dos nervos motores induzirem a contração muscular. Nervo e músculo não têm qualquer contacto direto. O nervo liberta uma substância que percorre o espaço entre os dois e vai fazer contrair o músculo. Ora, era precisamente este mecanismo que falhava nesta doente. Daí a fraqueza e a fadiga.
(Os meus jovens internos, se algum dia me lerem, vão achar estranho e talvez épico o que se passou em seguida. Hoje entubavam a doente e assistiam a respiração mecanicamente, talvez respirassem então tão profundamente como ela porque o pior já tinha passado. “Mudavam-lhe o plasma”, aquela parte do sangue que transporta a peçonha desta doença ou, se estivessem mas preguiçosos e dispostos a complicar-me a previsão orçamental, davam doses apropriadamente grandes e obscenamente caras de imunoglobulina, que em vez de extrair o tal veneno apenas o inutiliza).
Mas voltando ao tempo deste episódio dois Investigadores, Drachman e Engel tinham meses antes, depois de estudarem modelos que utilizavam um veneno de uma espécie de cobra, descoberto o mecanismo da doença. Assim era que, as defesas do doente, que o deviam proteger de infeções, desenvolvimento de tumores e outras maleitas, viravam-se por razões obscuras contra ele próprio, eliminando os receptores que era o sitio onde atuava a tal substância que fazia transmissão nervo-músculo. Tal como uma chave entra na fechadura compatível.
Mas os receptores, as tais fechaduras, demoravam muito tempo a ser substituídas. Assim, e naquela altura, tinha de se recorrer a algo que aumentasse o número de chaves, a tal substância que o nervo liberta para produzir contração muscular (vamos chamar-lhe Ach), e esperar que o número de fechaduras existentes fosse o suficiente para obter resposta.
A incipiente Farmácia do hospital não tinha os produtos adequados. Mas por sorte (lembram-se do Napoleão?) uma farmácia por perto tinha uma embalagem de Prostigmina (que também servia para tratar coisas mais prosaicas como a atonia intestinal) que é um produto que impede que a tal Ach, as chaves, sejam destruídas pelas enzimas normalmente presentes aumentando assim a sua concentração onde é necessária.
Não vou contar da ansiedade e angustia de encontrar a dose certa. Ao fim de meia hora começou a melhorar e passada uma hora a resposta era indubitavelmente positiva. As pálpebras subiram, os olhos voltaram ao seu lugar normal e simétricos, a voz era mais cheia, quase tanto como a minha satisfação. A partir daí já conseguia engolir e seria apenas necessário o equilíbrio da dose pois um excesso podia provocar também fraqueza: combater os efeitos colaterais por vezes desagradáveis, repetir a dose a cada 4 ou 6 horas e esperar que uma medicação oral e com efeitos mais prolongados chegasse do Porto.
Durante todo este tempo não me lembrei do meu pai. Toda a atenção estava concentrada na doente e as palavras eram dirigidas à eficiente enfermeira chefe. Quando dei por ele estava sentado imóvel e não me admiraria que rezasse.
Quando estávamos para partir deu-me um breve beijo na testa e disse apenas 2 ou 3 palavras:
-“Foi um diagnóstico rápido”
Não era preciso mais. Eu tinha conseguido o respeito do meu pai e finalmente o direito a ser chamado o Dr. Luís. O meu pai tinha-se reconciliado com as minhas escolhas e percebido que não seriam insuperáveis as minhas roturas com a tradição. A Neurologia não tinha sido maltratada. E sobretudo salvamos uma vida, que eu segui até deixar de ver doentes mais de 30 anos depois.
Saímos no silencio em que sempre andávamos. Mas desde aí as palavras eram realmente supérfluas...
Era véspera de Natal, a família e a velha casa de muitas gerações esperava-nos, como esperavam há anos.
Continua...

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