quinta-feira, junho 23, 2016



Lecturing...

Remonta aos 20 anos acabados de fazer, nas então célebres sessões das quintas-feiras da cadeira de Anatomia Patológica, a minha primeira experiência e o início de um encantamento. O tema era sugestivo e talvez um pouco faticano: “Revisão anátomo-clínica de 100 casos de AVC”.
Recordo a preparação do manuscrito com todos os livros e revistas abertos em cima de uma enorme mesa de bilhar, os diapositivos dos cortes de cérebro e a ajuda ainda paternal e segura do meu mestre. Do cuidado com que escrevi, não fosse a memória trair-me, em letras grandes e tinta preta, a sessão que iria dizer, numa resma de papel pesado. Que ficou esquecida em cima da secretária da sala de aula. É que, por muita que fosse a ansiedade dos dias precedentes, ao subir o estrado, ao olhar para o anfiteatro cheio, descobri em mim uma outra obscura e improvável natureza histriónica, que as palmas finais apenas reforçaram.
Não parei desde aí, mas também não é de mim que quero falar. É dos outros. Das múltiplas, sessões, conferências, seminários, mesas redondas, lições a que fui assistindo por esse mundo fora. Em que muito aprendi, modifiquei conceitos e atitudes.

(Convém referir que houve imensas a que não assisti ou por escolha prévia ou por descaradamente as abandonar a meio. Atitude que se não me gerou grandes simpatias, estou seguro terá contribuído para alguma da sanidade mental que ainda conservo).

Em primeiro lugar um destaque para os speakers ingleses. De longe os melhores, ajudados pela língua nativa e pelas entoações e melodia por ela permitidas. Nem os sapatos cambados, nem o blazer com caspa, nem mesmo a inevitável gravata do regimento conseguem desatentar da tradição dos esquemas didáticos, fossem eles genéticos ou aprendidos, dos oradores ingleses.

Os seus parentes americanos têm a mesma língua, mas uma atitude diferente ainda que diversificada. Vi alguns com botas de pele de cobra e salto alto, um cordão e uma placa colorida e corneada substituindo a gravata, olhando como se nos avaliassem por baixo de um stevenson.  Uma vez que o púlpito não permite a postura de saloon de um Clint Eastwood dos velhos tempos, apoiam os 2 cotovelos e brandem o ponteiro luminoso como um colt 45 enquanto debitam um discurso cool.

Há também os "profissionais" que se tornam mais transparentes quando a nacionalidade é americana ou italiana. O fato de Oxford Street azul escuro com padrão invisível, a gravata de Saville Row ou Prada aconselhada pelos mentors de televisão, os sapatos feitos à mão, o cabelo vindo de um cabeleireiro obsessivo. Com o mesmo fato, a mesma gravata e até a mesma convicção, defendem em sessões sucessivas, separadas por horas ou minutos, medicamentos diferentes e diferentes interpretações da mesma evidencia clínica, consoante os laboratórios que os contratam. Menos perigosos indiscutivelmente os italianos que parecem estar (quase) sempre com um ar de Nero arrependido. Mas, até para ser venal é preciso merecimento, diria certamente o Machado de Assis.

(“Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e  legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?.")

Há também, e de todas as nacionalidades, os que por insegurança, indolência ou displicência se limitam a ler os intermináveis textos que, numa combinação de cores quase invisível, recheiam os diapositivos. E nós  ou tentamos seguir o seu ritmo verbal e recuamos aos tempos em que soletrávamos na instrução primária, ou adiantamo-nos, como num filme em que o som não acompanha as imagens. Pensar que quase todas as aulas do curso de Medicina a que não compareci, seguiam esta técnica, chamemos-lhe eufemisticamente, não diacrónica! Daí a tal questão da sanidade que atrás falava...

Claro, há também os franceses. Eternamente zangados com a língua inglesa oficial que lhes é imposta e mais preocupados com uma, rara, exibição de elegância de raciocínio do que com qualquer inteligibilidade, que lhes pareceria redundante.

speakers lindas, elegantes, atraentes, provocadoras, feias e indefiníveis. Mas o que mais apreciei nas mulheres, nestas circunstancias permitam-me destacar, foi a colocação da voz. A entoação metálica e agressiva da nova-iorquina e a das nossas professoras de liceu, ocupam seguramente os últimos lugares. Num registo sonoro rebentariam com a escala de agudos, a par com os registos dos telhados da velha Lisboa, numa noite de luar em Janeiro. Nesse aspeto as mediterrânicas foram dotadas de vozes mais profundas e sensualmente colocadas. As nórdicas também, mas são incapazes de transmitir o mesmo desassossego.

O humor desempenha um papel importante no lecturing. Ninguém suporta já as anedotas preparadas nem os neurologistas estão muito a vontade a conta-las perante uma audiência. Senão teriam por certo escolhido outra atividade mais rentável... Mesmo que comecem pelo coloquial “Quando vinha para aqui o motorista contou-me...” :ou “ a minha tia que tem demência de Alzheimer...” Se defendo que uma conferencia deva ser preparada até ao limite do pormenor (mesmo que seja um improviso) o humor, esse, aconselho que o deixem fluir espontâneo e natural. Ao assim se proceder há uns fundamentais décimos de segundo em que a expressão do palestrante se ilumina e prende a plateia que fica suspensa das próximas palavras.

Poderia contar alguns destes episódios de humor, ao sabor das intervenções. Mas tentarei relatar apenas um, talvez  de tonalidade hamlética, que ocorreu há anos em Londres. De um lado, como moderador, estava um ainda jovem e conceituado neurologista que não era muito dado a contemporizações. Do outro um velho parceiro de profissão, em fim de carreira. Devo dizer que este famoso neurologista ocupou um volume inteiro do “Brain” ( uma das mais exigentes revistas de neurologia) com vários artigos sobre uma doença que hoje se sabe que não existe. E escreveu muitos volumes, que ocupam uma boa porção da estante, sobre alterações de linguagem, de que actualmente nem uma linha se aproveita. Já na altura deste episódio se encontrava em nítida perda. O tema da conferencia era, lembro-me, a linguagem gestual das pernas. A jovem secretária que lhe transportou a pasta, e as suas longas pernas inglesas na primeira fila, depressa esclareceram a plateia do rationale daquele trabalho científico.
Lembram-se do “Animal moribundo” já falado anteriormente? Pois o doutor MC parecia um dos personagens. O tratamento à próstata aflautava-lhe a voz. Os passos eram incertos e o equilíbrio instável. O discurso era errático e gratuitamente redundante. A decrepitude era total. E o tempo passava, passava cada vez mais lento. A dado momento parece acordar algum laivo de consciência e, encarando o moderador, diz-lhe apologético:

            - I think I am exceeding my time...

Quando se esperava alguma tolerância eis que a resposta surge com uma rapidez e incisão de Jeová:

            - Not only exceeding your time... your are aproaching eternity !  


Esta mesma questão do tempo gerou-me uma situação de embaraço uns anos depois quando em Coimbra moderava uma reunião com a agenda muito apertada e um grande número de oradores. Falava uma colega e amiga de outra Universidade, quando passados os 20 minutos a que tinha direito no programa, lhe propus 2 minutos suplementares para acabar a sua comunicação.
           
            - “Mas eu ainda não passei dos preliminares...” , disse ela com ar de desilusão, não sei se recordando outras situações semelhantes ou acusando-me a precocidade. Demorei alguns segundos a entender que neste caso não se tratava de qualquer desaviso precipitado da natureza, mas apenas das leis físicas da cronometria.


De resto foi aquando das moderações que me aconteceu um pouco de tudo...

continua










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