domingo, junho 19, 2016



A irmã certa
Não consigo precisar com toda a segurança qual será, cronologicamente, a primeira memória. Lembro-me de uma muito antiga, eu ainda numa cama de grades e ela numa cama livre. Nesse momento terei talvez experimentado o primeiro aguilhão de ciúme (Porque será que esta recordação se coloriu de ternura ao longo dos anos?)
Lembro-me também de ela me ser apontada como exemplo. Mas nunca a encarei como ameaça. Eu sabia que éramos diferentes. Ao cabelo loiro escuro atado num impecável rabo de cavalo só não correspondia, em mim, um cabelo desgrenhado porque mo cortavam à “inglesa curta”. O seu vestido eternamente branco contrastava com a minha camisa fora dos calções onde mal se descortinava a alvura matinal. Os sapatos com terra e lama, consoante por onde deambulasse, e as meias altas caídas assimétricas, contra os irrepreensíveis soquetes claros e os sapatos com brilho.
As brincadeiras calmas e sossegadas com a Rosita dos Pelâmes e as correrias desenfreadas pelos campos e pela rua com o Mário Rui e o Emídio. O assalto ao galinheiro e aos ovos para, depois de lhes abrir um buraco numa precisa ponta de arame, chupar a clara insípida até à gema apetecida: e obrigar o Mário Rui, que a mãe dizia que era fraquinho dos pulmões, a fazer o mesmo, utilizando a enorme desproporção física. Enquanto ela brincava tranquila e quase silenciosa às casinhas com bonecas e tomava o seu chá.
A, ante, após, até, com, contra, de desde... Ainda hoje guardo no mesmo circuito a mesma memória que se me inculcou enquanto ela decorava laboriosamente as preposições. E quando depois de ter aprendido a somar, me fez compreender em breves segundos, que a subtração era apenas a operação inversa o que achei estranhamente simples. Olhava para mim sem entender as incongruências. Porque rasgaria eu as páginas dos livros depois de lidas? Mas não seria eu capaz de ter nem um caderno de sumários? No entanto o que a chocaria mais profundamente seria a minha completa indiferença perante as imposições e a autoridade. O olhar parecia-me revelar tanta surpresa como admiração. Nunca censura ou sobranceria.
Separamo-nos cedo. O casamento e a sua partida ainda quase criança para terras na altura distantes, serviu-me de tema para uma redação que provocou lágrimas na reunião de professores e uma excelente nota a português. Ainda hoje seria capaz de a reproduzir sentimento a sentimento, lágrima a lágrima, não fosse pela lamechice em estado puro que destapava e que o mundo e a cultura viriam a aconselhar-me a disfarçar e a travestir.
Depois as notícias chegavam-me longínquas e indiretas. Quando voltou, transitoriamente fragilizada, algo tinha mudado. Eu sentia-me o irmão mais velho circunstancia mais induzida por ela que reclamada por mim.
Não convivemos muito, mas intensamente. E não se julgue pela descrição anterior que não tem fúrias telúricas (abençoado Gabriel, não anjo bélico como seria apropriado, mas o marido, que a atura). Mas para mim, foi sempre a continuação dos tais dedos cuja ternura atrás descrevi. O regresso sem grades à infância perdida e nela reencontrada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Revisitar o passado uma forma de dar sentido ao presente?
Ou uma forma de reposição da impermanência?
Ler, os que o tempo não conservou e mesmo distorceu, configura ambas as possibilidades.
Um bom dia para ti! :)

Luísa RC