quarta-feira, março 08, 2017

8 de Março de 2016Coimbra

Certamente, e mesmo atendendo aos indicadores que recorrentemente surgem acerca da condição feminina, ainda se justificará a existência de um “dia da mulher”. A evolução do conceito de igualdade não tem tido, de facto, o reflexo social e até profissional que seria lógico e desejável.
Mas os aspectos que hoje gostava de realçar são os positivos. Os da diferença de género.
Já não tenho idade para usufruir do entusiasmo louco da paixão. Antes mesmo da RM funcional demonstrar o desassossego neuronal que provoca, já o intuía. Recordo-o como os estados mais lúcidos, vibrantes e conscientes que vivi.
Recordo também, desde a infância, a ternura de um olhar, a segurança de um contacto mesmo que epidérmico. O jogo da cumplicidade mais profunda. A atenção. O pormenor. A dádiva.
A antecipação. O desejo. O fundir de imaginários. O cheiro. O reencontro. A morte, o esquecimento e o renascer.
Tudo isto e muito mais devo às mulheres que passaram e estão presentes diariamente na minha vida. O meu obrigado por existirem. Se pudesse, para mim, todos os dias seriam “da mulher

terça-feira, fevereiro 14, 2017

Sempre admirei os escritores que eram capazes de escrever no feminino. Que para mim atingiu o expoente máximo com Erik Orsenna e a sua “ Madame Bâ” uma africana do Mali que com a ajuda do seu advogado procura obter um visto para ir viver em França.
Como a ignorância é muito sem vergonha aqui vai a minha tentativa de uma carta de uma personagem fictícia que tem muito de várias outras bem reais.
"Olá!

Fiquei a pensar se te escrevia ou não na sequência da visualização da tua produção no blog. Não li tudo. Não estou na sintonia. Estou noutro mundo.

Mas não me és indiferente e gostei de te ver a produzir no blog.
aA tua vertente de escritor é uma vertente que gosto e de quando em quando vou reler-te. 

Umas vezes, muitas vezes, em fases em que estou
 descompensada (as mais frequentes no passado) mas outras, e foi o caso, em que o meu interesse é quase teórico.
Gosto de te ler porque traduzes bem estados emocionais próximos do que vou vivendo e gosto de te ler. Na escrita és como um velho amigo. E, como passaste tantas fases, há sempre uma mensagem de esperança que gosto de identificar.
Gosto de te ler porque traduzes bem estados emocionais  próximos do que vou vivendo e gosto de te ler. Na escrita és como um velho amigo. E, como passate tantas fases, há sempre uma mensagem de esperança que gosto de identificar.

Nestes textos, e comecei pelo primeiro das verdes colinas de África, reconheci-te o pedantismo e a marca provinciana que nem o Liceu Francês nem o mundo tqueque tiveste depois e permitiu ultrapassar e não tive muita empatia É uma espécie de deslumbramento perante ti próprio que eu sinto nos textos e que não tenho paciência. O senhor e os outros. Não são indígenas, mas estão lá perto. Olham-se com ternura como os pobrezinhos no Estado Novo.

Enfim, também pode ser um problema geracional, finalmente tens quase 70 anos e parece que a idade marca e nos distancia do cabelo comprido e os óculos de intelectual.

Não sou muito próxima do ambiente de caça, não lhe encontro mesmo qualquer sentido como actividadeatividade (turística? desportiva? hobby?) logo, saltei muitas linhas e apenas percebi o sentimento de o tempo imobilizado. É uma experiência que, por vezes, também atravesso. Compreendo. eE não é só por a terra ser Zulu. 

daDa caça, caça, passaste para o torgaTorga e é interessante porque ele introduz a dimensão dos afectosafetos na escrita e leva aos textos seguintes sobre a família, as raízes, a autoridade, o pai e a mãe. O feminino e o masculino em ti. Gostei. 

Os textos sobre o Torga são a antecâmara dos textos nucleares sobre a família.

Muito singular. Por vezes, quanto te leio sinto-te de uma transparência imensa, que só a escrita revela
..
...
Na vida real estás muito armadilhado. São muitos anos a vestir
 personagens. 

Não tenho ideia que seja uma mais valia conhecer-te pessoalmente.
Mas é a minha experiência, ,é só uma opinião e não falamos na dimensão de falar desde 2010. Fará sete anos um dia destes. talvez um ciclo que se feche. O anterior foi de duas vezes sete anos. Não deixa de ser singular.

Voltando ao Torga percebo, mas já sabia, que a tua relação com o Torga foi muito especial. Ou foi com o Adolfo que te deste?
Pensei que ias contar a história da última perdiz. Gostei que fossem outras.
Pensei que ias contar a história da última perdiz. Gostei que fossem outras. 

Surpreendeu-me escreveres sobre o teu pai.  
 
Sabes que, em todas as inúmeras conversas que tivemos, nunca me falaste do teu pai? 

Eu
,actualmente, atualmente vivo como se a minha mãe tivesse morrido, mesmo quando falo com ela. Se me estivesse a conhecer agora não te falaria da minha mãe. 

Nem do meu ex-marido. São duas pessoas que fiz morrer no meu quotidiano. Não existem o que me permite guardar as melhores memórias delas.
 

Logo, nestes pensamentos e descobertas sobre o papel dos presentes e ausentes importantes nas nossas vidas acabei por pensar em tuti e no papel da família no teu discurso, numa relação a dois e em ti próprio.
Por vezes, analisava e pensava que a tua personalidade border-line quando a leitura do teu comportamento me levava até aí, poderia enraizar-se, numa perspetiva próxima da psicanálise, nessa teia de afetos com as figuras parentais.
São o nosso chão. Não o escolhemos.
Por vezes, analisava e pensava que a tua personalidade border-line quando a leitura  do teu comportamento me levava até aí, poderia enraizar-se, numa perspectiva próxima da psicanálise, nessa teia de afectos com as figuras parentais.
São o nosso chão. Não o escolhemos.

Assim achei interessante e li com ternura o teu pai na tua vida, e essa leitura do passado de conciliação e amor e, principalmente, de te sentires testemunho da geração anterior.
penso
Penso que um dia também irás escrever sobre os teus filhos, mesmo o Gil e na Carlota que referes. Será um caminho.
Já falas com o teu filho Gil?

enfimEnfim, foi apenas uma boa companhia nesta tarde de sábado meem que me enrolo em casa no doce não fazer nada.

Não me és indiferente e, como te disse, na escrita, um velho amigo.

Um abraço e continua.


Ainda Roth, epístolas a mulheres e eu

Num jantar agradável, na semana passada, tive oportunidade de rever um velho companheiro de lides médicas e universitárias, hoje um escritor com alguns livros, um deles muito falado e com circulação muito aceitável para o nosso meio.
Falou-me de um projecto para um novo livro que se chamaria, ainda provisoriamente, “Cartas às minhas amigas” (Dada a imagem de “guru” que ele cultiva sugeri-lhe de imediato uma mudança para “Epístolas às mulheres”, o que, apercebi-me, lhe despertou um breve olhar condescendente).
Era sobre mulheres certamente. A minha surpresa foi completa já que, apesar da proximidade que tivemos, nunca lhe conheci, neste tema, um gosto pronunciado nem uma praxis fora da mediania. Também não precisava. É um intelectual.
E dei comigo a pensar que, à medida que a idade avança, muito gostam os homens de falar de mulheres! Uns, como um profissional de caça que me acompanhava quando as pernas subiam aqueles montes e serranias de granito, com a aspresa da urze em flor (- “Dei-lhe 3 e a gaja ainda estava a pedir mais”). Outros, como um enfermeiro chefe meu conhecido, com uma compreensão mais elaborada, presumidamente cabalística do que pensam ser a mulher (-“ Vestiu-se hoje de amarelo porque ontem insinuei que era a cor mais sexy! Está rendida, agora vamos ver se não me falta a coragem para o próximo passo”).
Outros ainda que, passivos, olham para as jovens que se renovam ano a ano sob os seus olhos. Mas têm ainda assim que dizer alguma coisa, que se não lhes vai no íntimo, pelo menos os esconjura. (“Ai se fosse no meu tempo!”).
Outros não aceitam esta desistência nem a recordação de fingimento contemplativo. Vestem-se de azul, enfiam, sem dificuldade de maior, um emblema clubístico cravejado de diamantes na lapela, importam o “artigo” periodicamente do Brasil e quando abusam da cor e dos químicos fazem breves passagens VIP pelos sobre lotados serviços de urgência.
Mas era sobretudo de certos intelectuais que queria falar. Escravos inventores de histórias, vão buscar ao passado recordações e mulheres. Moldam-nas aos seus conhecimentos e ás suas possibilidades actuais sem se importarem com a veracidade do produto final, da(s) personagem(s), e com total desprezo pelo imaginário feminino que nunca quiseram antever. Constroem situações e palavras que nunca poderiam acontecer. Uns, totalmente desprovidos de crítica ( lembram-se das “memórias das minhas putas tristes”?), não passam de uma ruína latejante do seu brilhante passado. Outros ( e lá vem o vosso querido Roth) ainda tem uns laivos de ironia (provavelmente tão rara como as suas erecções) que nos reconciliam momentaneamente com ele.
“For many dark hours I have been thinking about this…” diria na sua juventude alguém que recentemente, muitos anos depois, glosou divertidamente com este assunto em “things have changed” cujo vídeo-clip recomendo.
Algo julgo ter aprendido na literatura, na consulta, na música e na vida. Não vale a pena teorizar sobre o imaginário feminino. A única maneira de o antevermos é criar as condições para isso e pedir-lhes a elas para nos explicarem. Talvez aí a literatura, a consulta, a música e a vida fossem bem diferentes. Acabariam, isso seguramente, as epístolas paternalistas ás mulheres.

quarta-feira, janeiro 11, 2017


A opção e a consequência

Serei provavelmente petulante. No entanto muitos dos meus amigos são simples e autênticos no seu ser.
Serei porventura elitista. Mas gosto de aprender e ensinar sem limites nem preconceitos.
Sinto-me bem com a modéstia e a naturalidade mas mal com mediocridade dissimulada, a cultura arrogante e a artificialidade maltrapilha.
Serei pouco ortodoxo na maneira de vestir. Mas abomino o mau gosto e a ostentação.
Compreendo, persigo e favoreço a valorização pessoal. Mas não a confundo com espírito de missão e muito menos com concessões facilitístas e  ilusão de fancaria.
Vivo em Coimbra mas sou do Porto, de Lisboa e de Ovar. Assumo mais facilmente o provincianismo do que a urbanidade oca e de aparências.

Por isso custam-me certas escolhas de pessoas que não nos são indiferentes. Mas cada um gosta do que antevê.  Distorce como lhe aprouver. Logra-se como necessita.

Gostos não se discutem...nem mesmo se lamentam.  Redefinem, isso sim, às vezes sem retorno, quem assim opta...

quinta-feira, dezembro 29, 2016




Doutora Maria Cristina Januário Santos

O título académico de agregado atesta, num ramo do conhecimento ou sua especialidade, a qualidade do currículo académico profissional, científico e pedagógico bem como a capacidade para investigação e a aptidão para dirigir e realizar trabalho científico e independente.”
É assim com estas palavras e com este entendimento algo “simplista e básico” na legislação vigente que nos temos de confrontar ou conformar na elaboração do parecer que me foi requerido pelo digníssimo Presidente do Júri das provas de Agregação da candidata Doutora Maria Cristina Januário Santos.
O Decreto vai mais longe definindo mesmo, aritmeticamente, o que deve ser considerado pelo Júri no julgamento das tais qualidades, aptidão e capacidades atrás enunciadas.
Assim:
Ponto 1, “Publicação de, no mínimo, quinze artigos científicos em revistas indexadas Thomson Reuters (ISI) Web of Knowledge. Oito destes artigos, deverão ter sido publicados após a obtenção do grau de doutor, e situar-se nos Quartis 1, 2 ou 3 do Journal Citation Reports, da ordenação ISI da respectiva área científica. Do total de artigos do candidato, cinco deverão ter sido publicados nos últimos cinco anos e oito como primeiro, segundo ou último autor”.
Quer se critique ou não esta “exigência mínima”, aritmética e um pouco ad latere do que consideramos que deveria ser uma avaliação académica, certo é que a candidata a excedeu largamente. Senão vejamos:
            Número de publicações 61 (400% do exigido)        
            Últimos 5 anos 22 (275%) - sendo 10 quartil 1, 5 quartil 2 e os restantes do          quartil 3 (Journal Citation Reports)
                                                      
Como o doutoramento decorreu há 5 anos estes números respondem, em parte, ao exigido no ponto 2 (“Do total de artigos do candidato, cinco deverão ter sido publicados nos últimos cinco anos e oito como primeiro, segundo ou último autor”).
                                                    
Mas demonstrando uma inesperada complacência legislativa, diz ainda o citado decreto no seu número 3: “Em alternativa ao estipulado no ponto 1 ter um total de 200 citações e um somatório de fator de impacto (IF) igual ou superior a 50, bem como um número total de publicações não inferior a 10.”
Mesmo não necessitando, a Doutora Maria Cristina Januário Santos, deste critério de repescagem, ainda assim o seu CV a ele corresponde afirmativamente:

Número de citações 1372 (686%)
Factor de impacto: 227.193 (474%)

Numa perspectiva mais Universitária, mas mesmo assim sem prescindir da obsessão aritmética, o número 4 do decreto exige a “Orientação, no mínimo, de uma dissertação de doutoramento e 10 dissertações de Mestrado ou Mestrado Integrado.”
Mais uma vez o CV da candidata se mostra conforme a exigência:
                       
2 dissertações Doutoramento e 1 em co-orientação (CV pag 10) (200%)
20 dissertações de Mestrado Integrado, das quais 4 em co-orientação (pag. 6 e 7 do CV) (200%)


Levar-nos-ia muito longe a discussão dos fundamentos e importância do artigo 5º do presente decreto: (“participação como investigador em pelo menos um projecto financiado”) quando se discute a relevância, a evidência, a intencionalidade e a justeza de muitos destes subsídios e bolsas concedidos num passado próximo.
Mas, apesar dessas vicissitudes e interesses que têm menorizado as àreas clínicas, a candidata ultrapassa em 2.300% o mínimo exigível. Mesmo não contando com os ensaios clínicos de fase II e III que o Sr. Ministro da Ciência recentemente considerou, algo apressadamente na minha modesta opinião, não poderem ser considerados como trabalho científico, mas que talvez por descuido ainda se encontram plasmados no referido decreto.

-      Na área da Doença Machado Joseph – três projectos com financiamento – (CV pag 13)
-      Na área da Doença de Huntington – três projectos na European Huntington   Disease Network        (Euro-HD), Investigador Principal em Coimbra (CV pag   13)
-      Na área de Doenças do Movimento e Gânglios da Base - mais de 17 projectos FCT, GAI.. (CV pag 14 e 15)
-      Na Investigação clínica participou em todos os ensaios clínicos na DP e HD realizados no centro (cerca de 30) sendo PI nos últimos anos em 3. (CV Pag 16- 18)

Cumpre assim a candidata todos os critérios numéricos exigidos no citado decreto.
Mas penso que para avaliar o seu verdadeiro mérito para um título de agregado aquelas exigências numéricas, não sendo displicentes e tendo sido largamente ultrapassadas pela Doutora Maria Cristina Januário Santos, não são suficientes para definir nem mesmo descrever as suas qualidades académicas.

Destaco a sua excelente carreira médica hospitalar que a conduziu, ainda em 2002, ao lugar de Chefe de Serviço de Neurologia, um dos 4 existentes no Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. O que diz muito não apenas da sua competência técnica como da sua capacidade para formar elementos, integrá-los em equipas e coordená-los com grande eficiência. Condições necessárias à ascensão a este grau e nem sempre cumpridas por outros candidatos mesmo recentes. Aqui ficam alguns exemplos dessa actividade:
- Coordenadora da Consulta de Doenças do Movimento desde 1991.
- Coordenadora da Consulta de Doenças Neurogenéticas, que fundou em 2000.
- Coordenadora do sector de Internamento Neurologia B desde 2015.
Mas tem também a candidata obtido o reconhecimento dos seus pares a nível internacional como demonstram os seguintes factos:
- Em 2016 integrou como investigador clínico principal o Grupo Europeu para o Estudo das Atáxias, ESMI: European Spinocerebellar Ataxia Type 3/Machado-Joseph Disease Initiative.
- Investigador Principal do Estudo Observacional Registry e dos sub estudos; Registry Quality of Life; Registry Young Huntington’s Disease da Rede Europeia “Huntington Disease Euro-HD”
- Prémio “The Michael J. Fox Foundation for Parkinson’s Research - 2013
- Prémio Flad Life Science 2020
- Prémio Neurociências Mantero Belard 2013
Foi também reconhecida a sua importância a nível nacional ocupando cargos directivos de que destaco:
 - Direção da Sociedade Portuguesa de Neurologia 2005- 2007- Vice Presidente
             - Direção da Secção de Doenças do Movimento da Sociedade Portuguesa de Neurologia
             - Vice Presidente - 1996- 2000
             - Presidente - 2004- 2007
Tem igualmente uma grande experiência como docente, não só na vertente prática que é, (como sempre deveria ser considerada nestes casos) uma extensão da sua excelente actividade clínica, na vertente teórica, sendo igualmente um dos 3 docentes seniores que asseguram o ensino teórico-prático (parte essencial do ensino da Neurologia).
A candidata Doutora Cristina Januário Santos é assim um dos últimos exemplos de como deveria ser o percurso de um doutorado e agregado de uma cadeira clínica. Começando por uma carreira notável na área clínica, que foi entrelaçando com a investigação necessária às questões que os doentes lhe levantavam, articulando-se quando necessário com a ciência básica (transmitindo-lhe o realismo e a visão de um clínico nem sempre presente noutras circunstâncias) ao mesmo tempo que ía ensinando, os seus internos formando equipas coesas e competentes, e as centenas de alunos com os quais contactou.
Apesar de esta intensa actividade, teve oportunidade de construir um CV científico que compara e ultrapassa com frequência aquilo que é exigível legalmente (e se tornou a norma da actual cadeia de produção de doutorados), ser reconhecida como referência nacional e internacional na sua área.
Por todas estas razões, que seriam suficientes, mas mais ainda pela diferença, pelo exemplo, pela qualidade e pelo reconhecimento do seu trabalho, o meu parecer apenas podia ser positivo recomendando mesmo pessoalmente a candidata para o título de agregação a que concorre.


_________________________________________________
Professor Doutor Luis Augusto Salgueiro e Cunha

Coimbra, 29 de Dezembro de 2016


quinta-feira, dezembro 01, 2016

I, DANIEL BLAKE
http://www.imdb.com/title/tt5168192/

Quatro pessoas na sala de cinema. Que passa este filme apenas uma vez por dia. No entanto...tem tanto de atual como de profético. Um país em que o serviço nacional de saúde ainda funciona no limite, com a competência e um resto de humanismo dos médicos. Afundado em inoperância na relação com a segurança social, entregue a privados, escondidos atrás de regulamentos, linhas de atendimento e filtros digitais e suportado pelos insensíveis burocratas menores que não tiveram lugar na política.
Está a pensar na América de Trump? Desiluda-se, passa-se na Europa, ainda na CE, em que orçamentos e multinacionais e bancos e políticos estão destruindo todo o estado social que era a sua melhor herança. Só quatro pessoas se encontravam na sala...

terça-feira, agosto 09, 2016



Carta do Prof. Dr. Luís Cunha, Presidente da Assembleia Geral da A.P.A.F.

Caros Amigos e Sócios da APAF
 No momento em que se aproximam decisões importantes, e depois de tanto caminho percorrido em conjunto desde que este grupo de amigos e colegas de tiro, que há muito se conheciam, se sentiram na obrigação de defender as modalidades tradicionais até aí praticadas, nada se modificou nos objetivos iniciais da APAF. Pese embora as dificuldades criadas pela ambição de uma FPTAC protegida atrás de estatutos anacrónicos, leis interpretadas segundo as suas conveniências, um funcionamento “democrático” orgânico de auto-preservação. A que se juntam tentativas de intimidação individuais e coletivas que tiveram e terão a resposta adequada e tranquila que merecem.
Nunca nos declarámos contra ninguém. Sempre fomos a favor do diálogo e de eventual concertação. Do que não abdicamos mesmo é da defesa das nossas modalidades no seu estado puro, rejeitando imitações cuja aceitação, mesmo a nível internacional, tem sido demasiado pobre para ser risível.
Marcarei hoje mesmo uma nova AG em que gostaria de contar com a presença de todos os que se revêm na defesa do purismo, espírito e tradição das modalidades FITASC. Quaisquer que tenham sido as divergências de opinião do passado, por diferentes que sejam as perspetivas de futuro, as decisões serão tomadas com a participação de todos os que verdadeiramente se interessam pelo objetivo inicial.
 Do vosso Presidente da AG da APAF
 Luís Cunha

domingo, julho 10, 2016

Milagre e logro 
Depois de passar Leiria perto da Gândara e de Marrazes, na estrada para a Figueira da Foz, se olhar com atenção para a direita, descortina, entre as árvores e meio escondido, um clube de tiro onde me desloco com frequência para treinar. Tal como aconteceu hoje, dia de calor abrasador. No regresso, e quando tenho tempo, viajo algo perdido por estradas secundárias flutuando no País rural que ainda somos. Esta tarde depois de passar uma pequena povoação, e sem razão de maior além de uma doce sonolência, vi o pinhal que o sol já oblíquo enchia de sombras e de luz filtrada. Parei e mergulhei nele, pisando a caruma macia, estaladiça, apelativa. Deitei-me de bruços, a cabeça sobre a almofada dos braços cruzados e aspirei o aroma a areia e a resina seca da minha infância, que começou a passar por mim em clarões de imagens que as pálpebras isolavam do exterior.


Quando julguei ter acordado vi-a.

Na mesma posição terei acordado, como muitas vezes me acontece, com o abesular de uma frase retirada dos circuitos recônditos e oníricos das memórias.
“...com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.” 
Não sei o significado da intromissão do Álvaro de Campos neste despertar porque o relativo mal-estar era apenas físico. Certo que a alma também não entendia o que via, mas a sensação estava longe da amargura realista do verso.

            - “Encontrei-te tão desabrigado no teu sono que resolvi ficar”. Estava sentada, cabelo em atraente desalinho, os braços em redor dos joelhos recobertos por uma desordem de folhos de cores indistintas, os pés descalços.

            - “Sabes por acaso o nome da povoação que deixaste lá atrás?”

            -”Não”- respondi ainda com a mesma expressão de surpresa inicial.



            - “Mas olha que está escrita à entrada em letras bem grandes. Se já não reconheces os símbolos, se já não juntas as letras, se já não apreendes o seu significado pela imagem, talvez sejas mesmo um caso perdido.” Disse com um sorriso que me pareceu mais irónico que de desistência.
            -“Pois, o nome da povoação é Amor. E se não reconheces a palavra como poderás entender o sentimento e tudo o resto?”

            - “Tu por certo saberás...”- defendi-me eu.-“ E já agora como te chamas?”.

            - “Como me chamo ... o meu nome pouco importa, não passou à história, mas eu sim. As letras que viste, não leste nem entendeste, dedicaram-nas a mim. Ainda estes pinheiros mal tapavam o sol com que agora brincas e o mar se ouvia à distancia”.

            - “Tinha a ideia que o nome de “Amor” seria o que restou de uma relação que o D. Diniz teve por aqui com uma camponesa. Há mesmo historiadores recentes que insinuam que eram amores com um homem...”

Levantou-se tão depressa que apenas pressenti o roçagar precipitado dos folhos e o peso dos seios que o cordão aberto do decote quase revelava, antes de uns olhos
nocticolores ocuparem toda a minha visão faiscando um súbito ódio como só uma mulher pode.

Não me assustei. Já tinha passado por situações semelhantes e com outras cores. Os verdes, os mais assassinos, os azuis mais deliquescidos e os mais escuros, como era o caso, que parecem concentrar em si todos os abalos do passado remoto da espécie.
Para não desviar os olhos é preciso abstrair-se noutros sentidos. O peso era agora real. A respiração agitada e próxima. O cheiro a primavera de prado e a incenso profanado. Os cabelos submergiam-me o rosto. Mas era o imago esmagador da presença física em si que me aniquilava. E o ódio dos olhos que depois de rebuscar o mais profundo da minha alma se foi consumindo como um nascer do sol...


O sonho, dizem, é o inconsciente, as reminiscências, o quimérico, o imaginário e o desejo que emergem soltos sem a advertência nem a modulação da vontade e das conveniências. No meu caso foi mais como um filme romântico hollywoodesco da década de 50 ou a “reverie” erótica de determinadas mulheres. Como numa película cortada pela censura vi-a já sentada na posição inicial. Os cabelos talvez mais graciosamente desgrenhados, a postura mais permissiva, a face mais rosada, os olhos mais líquidos e profundos e os lábios entreabertos como se se preparasse para um longo monólogo. Estranhamente, e contra o que é meu costume, confiei.

-“Não, era uma relação com um homem não. Nem sei com que intenção isso foi alvitrado. Mas suspeito de conjurações- que já nessa época existiam- e que nos tempos de agora parecem ter ganho maior evidencia. Quando era das mulheres, a inveja era menos dissimulada. Eu bem a percebia no olhar esguelhado das minhas companheiras. Na avaliação que do meu corpo faziam. Na atenção, sempre pronta a censurar, com que seguiam os meus gestos, as minhas palavras. Eu tinha consciência disso e nem te posso dizer que não gostava. Erguia a cabeça, endireitava as costas e andava com o ar mais felídeo de que era capaz. Sentia aquele orgulho que só a paixão do homem amado nos pode exaltar.”
“Pouco me interessava que fosse Rei. Desde que eu fosse sua mulher e rainha dele próprio. De resto não gostava de o encontrar sedoso e postiçamente perfumado, como quando vinha da corte e o desejo o fazia correr até mim. Reverenciava isso sim eram os olhos ainda injetados de emoção e da força, o desalinho do cabelo e das vestes, o suor salgado da perseguição, o cheiro a mato, urze e estevas e as mãos com laivos de sangue, quando me procurava depois de um dia de caça, como a sua última presa a que se renderia...”



- “Mas ele era casado não era?” perguntei tentando a entoação mais neutra que me era possível e provocando-lhe um breve encolher de ombros.
- “Parece até que com uma futura santa...”. Desta vez não conseguiu resistir à provocação.
- “Consegues imaginar o que seria se todas as mulheres, só porque enganam o marido, com rosas que seja, fossem canonizadas! Ela fingia-se santa, isso sim! Uma vez, em troca da coragem que não tinha para o confrontar, resolveu alumiar todo o caminho desde minha casa ao castelo, caminho que ele teria forçosamente de percorrer para voltar, sob o olhar velado, mas zombeteiro das aldeias”. O esforço para se conter aprofundava-lhe a respiração. -” Só lhe faltou mesmo pendurar duas luminárias na ponta dos...”
- “Bem!” interrompi eu, o mais abruptamente que me foi possível, olhando aqueles olhos agora faiscantes e o rubor quase púrpura dos lábios que pronto se cerraram.
-” Tão cego vinha” citei eu reproduzindo o que me lembrava da reação do amante iluminado.
“-Tu julgas que o amor necessita de luz e esclarecimento e lucidez..Mas eu dava-lhe a cegueira do sol mais brilhante, oferecia-lhe o sonho das sombras mais profundas, o riso de um regato de montanha, a raiz entranhada na terra e a seiva escorrendo desbragada.”


Acordei para o meu mundo com um arrepio. Era já noite com o cheiro da caruma infecunda e da resina ressequida. Dirigi-me ao carro tropeçando nos ramos secos dos pinheiros. A segurança dos  “led” de última geração substituíram a luz do ciúme, do despeito e do amor no regresso a casa.