terça-feira, fevereiro 14, 2017

Ainda Roth, epístolas a mulheres e eu

Num jantar agradável, na semana passada, tive oportunidade de rever um velho companheiro de lides médicas e universitárias, hoje um escritor com alguns livros, um deles muito falado e com circulação muito aceitável para o nosso meio.
Falou-me de um projecto para um novo livro que se chamaria, ainda provisoriamente, “Cartas às minhas amigas” (Dada a imagem de “guru” que ele cultiva sugeri-lhe de imediato uma mudança para “Epístolas às mulheres”, o que, apercebi-me, lhe despertou um breve olhar condescendente).
Era sobre mulheres certamente. A minha surpresa foi completa já que, apesar da proximidade que tivemos, nunca lhe conheci, neste tema, um gosto pronunciado nem uma praxis fora da mediania. Também não precisava. É um intelectual.
E dei comigo a pensar que, à medida que a idade avança, muito gostam os homens de falar de mulheres! Uns, como um profissional de caça que me acompanhava quando as pernas subiam aqueles montes e serranias de granito, com a aspresa da urze em flor (- “Dei-lhe 3 e a gaja ainda estava a pedir mais”). Outros, como um enfermeiro chefe meu conhecido, com uma compreensão mais elaborada, presumidamente cabalística do que pensam ser a mulher (-“ Vestiu-se hoje de amarelo porque ontem insinuei que era a cor mais sexy! Está rendida, agora vamos ver se não me falta a coragem para o próximo passo”).
Outros ainda que, passivos, olham para as jovens que se renovam ano a ano sob os seus olhos. Mas têm ainda assim que dizer alguma coisa, que se não lhes vai no íntimo, pelo menos os esconjura. (“Ai se fosse no meu tempo!”).
Outros não aceitam esta desistência nem a recordação de fingimento contemplativo. Vestem-se de azul, enfiam, sem dificuldade de maior, um emblema clubístico cravejado de diamantes na lapela, importam o “artigo” periodicamente do Brasil e quando abusam da cor e dos químicos fazem breves passagens VIP pelos sobre lotados serviços de urgência.
Mas era sobretudo de certos intelectuais que queria falar. Escravos inventores de histórias, vão buscar ao passado recordações e mulheres. Moldam-nas aos seus conhecimentos e ás suas possibilidades actuais sem se importarem com a veracidade do produto final, da(s) personagem(s), e com total desprezo pelo imaginário feminino que nunca quiseram antever. Constroem situações e palavras que nunca poderiam acontecer. Uns, totalmente desprovidos de crítica ( lembram-se das “memórias das minhas putas tristes”?), não passam de uma ruína latejante do seu brilhante passado. Outros ( e lá vem o vosso querido Roth) ainda tem uns laivos de ironia (provavelmente tão rara como as suas erecções) que nos reconciliam momentaneamente com ele.
“For many dark hours I have been thinking about this…” diria na sua juventude alguém que recentemente, muitos anos depois, glosou divertidamente com este assunto em “things have changed” cujo vídeo-clip recomendo.
Algo julgo ter aprendido na literatura, na consulta, na música e na vida. Não vale a pena teorizar sobre o imaginário feminino. A única maneira de o antevermos é criar as condições para isso e pedir-lhes a elas para nos explicarem. Talvez aí a literatura, a consulta, a música e a vida fossem bem diferentes. Acabariam, isso seguramente, as epístolas paternalistas ás mulheres.

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