segunda-feira, janeiro 17, 2005

A última de gauchos..prometo!

No aeroporto de Ezeiza:
De regresso ao movimento, às filas de gente e de trânsito, recordando o lamento simples e incomodativo das rãs argentinas.
Uma ideia para um conto – O meu doente argentino


Há três meses atrás, um convite algo inesperado, num dia de vento e frio, em pleno Inverno. Para comer um cordeiro nesta terra de gado. À mesa na varanda, ao ar livre, o pão caseiro que lembrava a infância. Sem sofisticação. E claro, o cordeiro... Ao longe, do outro lado do rio Salado, mas unido por uma estreita ponte de madeira, um moinho e a casa ainda algo triste do Monzón. Mas como “um almoço nunca é de graça” à sobremesa, uma conversa reservada ao pé do reservatório de água, elevado e circular, contrastando com a planície imensa a perder de vista, com os esteiros, lagoas e canais quebrando uma monotonia verde, de olhos no chão, bota gaúcha impaciente, o Roque apresentou-me o caso do seu filho. Conhecia já os meios-irmãos, a Carolina e um pequeno de quatro anos que mal ouvia ao longe o som do carro corria para nos abrir a cancela do caminho que obrigatoriamente teríamos que passar. O pequeno, vivo, despachado para chegar ao gancho e, pendurado na porta, que por inércia se abria. Os olhos escuros fitando de frente, procurando o reconhecimento na forma de um rebuçado, de um doce, ou por vezes apenas num sorriso... A Carolina, com um ar compenetrado e sério, aos fins-de-semana, quando chegava da escola, onde tinha que viver, a alguns quilómetros de distância. Contrastando com estes, o mais velho, o do primeiro casamento. O olhar ausente, a marcha algo irregular, uma assimetria na postura e na mímica.
Afinal era ele o motivo do almoço, o culpado do sacrifício do cordeiro... Que caía do cavalo vezes sem conta. Que se esquecia de tudo. Que não aprendia facilmente os gestos repetidos de tomar conta das vacas. De marcar o gado. Por vezes, tinha ataques; ficava, hirto, espumando pela boca, olhares revirados, como se não suportasse o peso de si próprio. Umas palavras que se trocam com ele, voz arrastada, às vezes incompreensível. Tinha dias em que estava pior, insistia o pai, receoso que o exame superficial deixasse escapar algo. Mas tinha outros dias e outros momentos que surpreendia, como se quisesse, transitoriamente, entrar no mundo dos outros. Sugeri uma medicação, convencido que, no máximo, conseguiria evitar as crises com perda de conhecimento. Instrui, detalhadamente, a subida do medicamento, que o Carlos levou na semana seguinte.
Os dias de férias acabaram e voltei à rotina da vida. Da epilepsia diagnosticada por vídeo E.E.G. Das ressonâncias e tomografias. Do teste de Wada , das dosagens dos antiepiléticos. Dos novos fármacos e dos ensaios clínicos. Às vezes recordava a casa do Monzón. Mas confesso que poucas vezes me recordei do “meu doente argentino”.
Meses depois voltei... A abrir o portão, rápido ao ouvir o carro, estava ele. Apresentaram-me... o teu médico. E aquele olhar que eu recordava ausente,
aquela mímica assimétrica, abriu-se um sorriso, num olhar de cumplicidade. Para qualquer neurologista, para qualquer médico, a explicação era evidente.
Mas naquela terra do fim da civilização, onde a saúde se mede pelo que se faz na luta pela sobrevivência, a situação adquiriu o estatuto de acontecimento. Não senti o natural sorriso de orgulho profissional. Apenas uma enorme gratidão por poder observá-lo na sua vida de gaúcho.

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