quarta-feira, janeiro 12, 2005

Como nasceu um gaúcho

Há dois séculos atrás, com o fim de estabilizar as zonas de fronteira, foram projectados, no Norte da província de Santa Fé, os “Fortins”. Não será difícil imaginar a planície “pantanera”, com os seus nasceres do sol que chamam á vida, os ecos dos cantos dos pássaros, os “carpinchos” passeando e desfrutando as margens do estreito rio Salado e de todo o pântano que alimenta e de que se alimenta. Nem difícil será imaginar a imagem algo fria de um jacaré, adormecido como que protegendo cada movimento, e o ruído da água que se abria para o englobar no seu seio.
Como também se adivinha a vida frugal, simples, solitária e contemplativa dos seus colonos. Vivendo da terra, pesada e pantanosa em que o cavalo significa muito mais que um transporte, mas a própria sobrevivência.
Um desses fortins era conhecido pela designação precisa e única, mas pouco evocativa, de “Fortin 80”. Tinha por função, também, estabilizar os índios, algo aguerridos, ciosos daquele lugar. E se não é difícil apreciar todo o ambiente descrito, já os índios, de tão controlados, desapareceram. Os seus costumes, a sua tradição, a sua vida. Que não o meio selvagem que forçadamente nos legaram. Deixaram vestígios do seu sangue nas peles morenas, em alguns traços fisionómicos e segura e ironicamente na personalidade e no modo de pensar dos que aí vivem. Mas do “Fortin 80”, do seu posto avançado ”Fortin Chico”, resta a estrutura e tudo o resto. Apenas mudaram os nomes: Espadana, Monzón, la Harmonia, Pampa y Cielo, Carolina. Mas ainda não sugestivos.
Talvez por isso prefiram conhecer essas terras como las de Roque, las de Barbier, las de Hugo, como se o nome do proprietário definisse aquilo que é uno, estável. Ora nessas casas isoladas com contactos ocasionais com os vizinhos vive-se, chora-se e até imagine-se, se morre.
A história que lhes quero contar passou-se exactamente aí: na “ la de Hugo”. Há três ou quatro anos, viajando mais de quatro horas por estes caminhos de lama, buracos, beleza e solidão e fui ter precisamente aí.
Ora a confiança dessas pessoas é algo que se pode ir conquistando, respeitando as enormes diferenças, com o tempo. Numa dessas casas isolada e triste, sem cor, como nos seus telhados de zinco, vivia a família de Hugo. Sem luz, sem rádio. Os dias faziam-se ao ritmo do sol, da chuva e das necessidades do gado e do domínio do cavalo. Nessa casa, com os seus pais e irmão, vivia uma jovem. Algo, com 20 anos de vida, que não era difícil apenas porque era a única que conhecia.
Vi-a pela primeira vez espreitando da estreita porta, apenas se adivinhando os cabelos em desalinho, baços, com um aspecto de animal nobre e selvagem perturbado na sua tranquilidade e nas suas certezas.
No ano seguinte, enquanto fazia um esforço, para eles ridículo, para subir para um cavalo, voltei a vê-la. A roupa, indefinível quanto à cor, amorfa. Os olhos no chão, com olhares breves, como que insuportáveis, aquilo que se passava em redor. O pé descalço, traçando desenhos no chão que só ela entenderia. Mas... todos os paraísos têm o seu preço.
Alguém, um dia, como diz a história, alguém aparece a tentar como a serpente. E a cobrar como Deus.
A serpente surgiu com a forma de uma organização de caça. E a tentação, a sedução, através de um guia de caça. Johan, experiente, diria que civilizado.
No ano seguinte, apercebi-me do inevitável. O ser amorfo, os olhos distantes como a terra, desabrochou como uma flor rústica, com uma sensualidade que por não ter modelo se assumiu em toda a sua naturalidade. E o seu corpo começou a ganhar forma ainda que progressivamente mais arredondada. Os olhos tornaram-se mais vivos como que se compreendesse. As costas endireitaram-se como se já não tivesse que pedir desculpa por existir.
Na visita seguinte não a vi. Mas soube que tinha nascido o Bruno. No meio do campo e sem “ecos” nem suplementos vitamínicos, como é natural. Mas o trabalho do campo é duro, as distracções da natureza podem pouco contra os conflitos e a confusão da cidade. Que cobrou o seu tributo ao campo, ao parceiro. A dádiva da sexualidade que despertou não prendeu o guia, e o animal que transformou em mulher mergulhou. Como se tivesse cumprido a sua história. Olhos no chão, sem vergonha mas sem chama. A roupa outra vez indefinível e amorfa. O pé, desenhando talvez mais fundo na terra que lhe pertencia. A borboleta tivera o se momento. Enquanto o cisne cantava, as asas desdobraram-se em cor e seiva. Eficaz e vibrante como todas as metamorfoses.
E, pensava eu, este teria sido o fim de uma história comum, banal, velha como o tempo. Que apenas teria de notório a simplicidade, a transparência de estados de alma que todos mascaramos.
Mas não. A semana passada, o Hugo, o chefe do clã, que assistiu a tudo do alto da sua violência contida, com a arrogância simples impermeabilizando-o aos dramas que o rodearam, vinha a cavalo na minha direcção. Conheço por demais o seu vulto que se esfuma na pampa. No entanto, havia algo a mais. Algo a mais do que eu me recordava, Mas algo que estava lá como se sempre tivesse estado.
No pântano, a luminosidade e a refracção vão-me pouco a pouco revelando e realidade. Sentado á frente do avô, fazendo corpo com ele, com o cavalo, com a pampa, com a história, com o tempo, a figura frágil e agora distinta do Bruno. Então, instintivamente, percebi: tinha nascido um gaúcho!

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